Comentário

Assim vai o estado da «União»...

João Ferreira

Dis­posto a evitar salgar fe­ridas recém-abertas, num re­gisto só­brio e con­tido, dis­tante da «eu­ro­peísta» ba­zófia de ou­tros tempos, re­gisto esse sin­to­má­tico da di­mensão e pro­fun­di­dade da crise do pro­jecto de in­te­gração ca­pi­ta­lista eu­ropeu, assim se apre­sentou o pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia, pe­rante o Par­la­mento Eu­ropeu, no úl­timo de­bate sobre a si­tu­ação da União Eu­ro­peia.

O pri­meiro desde a de­cisão do Reino Unido de sair da UE, este de­bate ini­ciou-se com Juncker cau­te­loso e con­des­cen­dente, aqui e ali jo­gando à de­fesa. Que a Eu­ropa está em crise, sim, mas que não se pro­cure na UE e na sua acção a jus­ti­fi­cação única para esta crise. Que se pro­cure antes na UE a so­lução para a crise. Com «mais e me­lhor Eu­ropa», está claro (en­tenda-se: mais UE).

Ten­tando a todo o custo evitar que ou­tros vejam na porta aberta pelos bri­tâ­nicos a ser­ventia da casa, Juncker apressou-se a sos­segar os mais in­qui­etos: «a UE não é nem será um super-es­tado». Nem tam­pouco pre­tende, deus os livre, des­res­peitar as so­be­ra­nias na­ci­o­nais. Pelo con­trário, a «Eu­ropa» cá es­tará apenas para «ajudar», para «acres­centar» e não para di­fi­cultar a vida aos es­tados na­ci­o­nais. Exer­cício gro­tesco este, ou não fossem estas pa­la­vras pro­fe­ridas num mo­mento em que pesam sobre es­tados na­ci­o­nais, como Por­tugal, chan­ta­gens e ame­aças de san­ções da UE por não serem aca­tadas as suas im­po­si­ções. Mas este exer­cício de­monstra, ao mesmo tempo, que quem o faz sabe per­fei­ta­mente, para lá das nu­vens de po­eira er­guidas nos úl­timos meses, quais foram as causas fundas do re­sul­tado do re­fe­rendo no Reino Unido: a per­cepção pelos povos do ca­rácter cres­cen­te­mente an­ti­de­mo­crá­tico, an­ti­na­ci­onal e anti-so­cial da UE.

Não fosse este um tempo de vivas con­tra­di­ções, menos de dez mi­nutos de­pois de ab­jurar a pulsão fe­de­ra­lista, Juncker es­tava a de­fender, com a mesma des­con­traída lata com que ne­gara a ideia do super-es­tado, que é tempo de termos um ver­da­deiro «mi­nistro dos Ne­gó­cios Es­tran­geiros» da UE, que per­so­ni­fique uma única po­lí­tica ex­terna, aca­bando com a dis­persão cau­sada pela exis­tência de múl­ti­plas po­lí­ticas ex­ternas na­ci­o­nais. Para além, claro, de de­fender também, no­va­mente, uma ideia que há muito lhe é cara: a da cri­ação do exér­cito eu­ropeu.

É sin­to­má­tico do ac­tual es­tado de coisas na UE e, bem assim, dos pe­rigos e ame­aças que este pro­cesso com­porta para o fu­turo da Eu­ropa e dos seus povos, que a grande no­vi­dade do dis­curso de Juncker tenha sido a da cons­ti­tuição de um novo fundo da UE – não para pro­mover a co­esão eco­nó­mica e so­cial, não para com­bater o de­sem­prego e a po­breza, nem se­quer des­ti­nado à pro­tecção do am­bi­ente, mas sim para de­sen­volver e in­cre­mentar as ca­pa­ci­dades mi­li­tares da UE. Disse-o o mesmo Juncker que poucos mi­nutos antes tinha des­fiado a la­dainha da UE como pro­jecto ga­rante da paz (sem pre­ce­dente nem pa­ra­lelo) no con­ti­nente eu­ropeu. Mas o con­sa­bido atre­vi­mento do pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia deu para isto e deu para mais. Deu para afirmar, sem corar de ver­gonha, a sua firme in­tenção de com­bater a evasão fiscal – ele que, en­quanto mi­nistro das Fi­nanças, pri­meiro, e pri­meiro-mi­nistro do Lu­xem­burgo, de­pois, as­sinou acordos se­cretos com vá­rias mul­ti­na­ci­o­nais para as ajudar a fugir ao pa­ga­mento de im­postos. Deu também para afirmar, ainda e sempre com ar sério, que na UE não há dum­ping so­cial. Azar dos azares (ou mera dis­tracção do per­so­nagem), fê-lo na mesma sessão ple­nária em que es­tava agen­dada a dis­cussão de um re­la­tório (que viria mais tarde a ser apro­vado pelos seus cor­re­li­gi­o­ná­rios) com o tí­tulo «Sobre o dum­ping so­cial na UE».

Quanto ao resto, pouca ou ne­nhuma no­vi­dade. Re­forço da do­tação do Plano Juncker – que após o pri­meiro ano de fun­ci­o­na­mento con­cen­trou mais de 90 por cento dos re­cursos dis­tri­buídos em apenas cinco países, sendo que 19 es­tados-mem­bros, Por­tugal in­cluído, não viram nem um cên­timo do dito plano. De­fesa do euro e dos seus me­ca­nismos, que con­si­derou «for­ta­le­cerem a Eu­ropa», enfim, a ha­bi­tual des­fa­çatez do per­so­nagem dando ar de sua graça. E, fi­nal­mente, feita a de­fesa do im­pulso mi­li­ta­rista, no plano ex­terno, juntou-se-lhe, no plano in­terno, a de­fesa da de­riva se­cu­ri­tária, da li­mi­tação de di­reitos, li­ber­dades e ga­ran­tias, em nome do es­ta­fado ar­gu­mento da «se­gu­rança» e do «com­bate ao ter­ro­rismo».

Quanto às re­ac­ções ao dis­curso, também se po­derá dizer: ne­nhuma no­vi­dade. O dis­curso de Juncker foi sau­dado e elo­giado pela sua fa­mília po­lí­tica – onde se in­te­gram PSD e CDS – e também pela so­cial-de­mo­cracia eu­ro­peia, PS in­cluído, que aplaudiu de pé.

 



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