Adriano Correia de Oliveira está connosco

Manuel Pires da Rocha

Tocar com o Adriano era um acto de cri­ação co­lec­tiva

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Na­quele ano a Festa foi em Julho. Es­ti­vemos uns dias a en­saiar em casa do Ma­nuel Louzã Hen­ri­ques, seu amigo e ca­ma­rada desde os tempos de ju­ven­tude em Coimbra. Com o Adriano Cor­reia de Oli­veira nunca se en­saiava. Não era pre­ciso, porque as can­tigas sa­biamo-las de cor dos co­mí­cios, da rádio, dos discos de vinil e capa grande, de ou­tras vozes que lhas foram rou­bando e en­tre­gando nos lu­gares onde fa­ziam falta. Mas da­quela vez en­saiou-se. Porque havia uma can­tiga nova, com mú­sica que o Adriano tinha com­posto para um poema de Eu­génia Cu­nhal – «o tempo passa amor / correm os dias…», que ficou por gravar – e o cantor exigiu-se re­catos que a vida de an­da­rilho per­ma­nente não lhe per­mi­tiam (re­catos de que nem gos­tava). À hora mar­cada, não me re­cordo se de sexta-feira se de sá­bado, su­bimos ao palco no Alto da Ajuda, o Adriano, eu e o Paulo Vaz de Car­valho, para a úl­tima vez em que cantou na Festa do jornal do seu Par­tido.

Com o Adriano co­me­çava-se a tocar por artes de coin­ci­dência nos palcos, em co­mí­cios e ses­sões de es­cla­re­ci­mentos, nos en­con­tros da Re­forma Agrária, nos lu­gares mais «di­fí­ceis» da acção po­lí­tica dos co­mu­nistas, como em Gou­veia pouco de­pois do Verão Quente. Cantou-se à luz dos is­queiros porque a luz do salão tinha sido sa­bo­tada – o Dias Lou­renço falou, o Adriano cantou acom­pa­nhado da Bri­gada, a voz con­quis­tando a es­cu­ridão, o rumor da sa­bo­tagem a afastar-se a pouco e pouco como na so­no­plastia dos filmes. E era assim por todo o lado, os mais novos a ofe­re­cerem-se para o pri­vi­légio de acom­pa­nhar aquela voz po­de­rosa e suave, pe­ne­trante e rica. E ele dei­xava, como ex­plicou há uns anos o Paulo Vaz de Car­valho nas pá­ginas deste mesmo Avante!: «Quatro tá­buas fa­ziam uma mesa, ao cair da tarde; co­mendo as­sados ao correr do vinho da Terra Quente, fomos com­bi­nando a ordem das in­ter­ven­ções: agora tu, de­pois eu... fui dando amos­tras do que le­vava para tocar, ele ia trau­te­ando can­ções que se en­ca­de­avam bem com a mú­sica de gui­tarra. Sur­giam as con­cor­dân­cias. Con­ju­guei o toque de clás­sicos com pre­lú­dios às suas can­ções; mais um gole de ma­duro, ex­pe­ri­mentei acom­pa­nhar can­ções que já co­nhecia nessa voz que ouvia desde o Liceu. Ajus­támos tons e acer­támos en­tradas. Ainda a ca­neca ia meia e já éramos um duo, um duo com uma gui­tarra a ca­minho do palco e uma voz a três anos do si­lêncio, O con­certo saiu bem». Saía sempre bem. E quem diz duo diz trio, e diz quem mais se jun­tasse à voz do Adriano nas can­ções-fer­ra­menta do seu pro­pó­sito re­vo­lu­ci­o­nário. Tocar com o Adriano era um acto de cri­ação co­lec­tiva, a re­pe­tição do pro­cesso que é o das lutas todas em que a razão e a fra­ter­ni­dade são ma­téria de cons­trução dos ama­nhãs, os tais que só o serão a sério quando os ou­virmos cantar.

Mi­li­tância co­mu­nista

Do Adriano Cor­reia de Oli­veira es­creveu um dia Óscar Lopes que «es­teve desde cedo e até à morte com aqueles para quem a li­ber­dade se con­cre­tiza em metas como abo­lição da ex­plo­ração pela mais-valia, como a li­ber­tação da terra la­ti­fun­diária, como a re­a­li­zação pro­gra­má­tica e até cons­ti­tu­ci­onal das me­lhores vir­tu­a­li­dades hu­manas, in­di­vi­duais e co­lec­tivas, e como a au­tên­tica au­to­de­ter­mi­nação na­ci­onal, na eco­nomia e também na cul­tura. E é por isso que Adriano Cor­reia de Oli­veira está hoje con­nosco, está hoje com aqueles que re­al­mente se em­pe­nham na­quela li­ber­tação da terra pela qual Ca­ta­rina Eu­fémia se trans­formou, como ele canta, em Rosa de Sangue». E é por isso, acres­cen­tamos nós, que o canto do Adriano per­siste canto de so­be­rania apon­tado aos «co­me­dores de di­nheiro / que do sa­lário de tris­teza / ar­re­cadam o lucro in­teiro». No seu timbre ir­re­pe­tível pai­rando sobre «sequên­cias har­mó­nicas muito usadas em Coimbra, a canção do Adriano era sempre o eco de uma ba­lada triste. Louzã Hen­ri­ques, ao apreciá-lo como autor, disse que ele, acima de tudo, tinha ar­ran­cado ao co­ração do povo um belo pu­nhado de me­lo­dias». O canto de Adriano é o dos Fados e Ba­ladas de Coimbra, o das Can­tigas Por­tu­guesas, o dos po­emas de Ma­nuel Alegre, Ro­salia de Castro, Rei­naldo Fer­reira, Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, Borges Co­elho, An­tónio Ca­bral, José Afonso, Fer­nando Assis Pa­checo, Ma­tilde Rosa Araújo, An­tónio Ge­deão, Ma­nuel da Fon­seca, entre muitos mais. O canto de Adriano é o Cantar da Emi­gração, a Trova do Vento que Passa, O Se­nhor Mor­gado, Tejo que Levas as Águas, Morte que Ma­taste Lira, Lá­grima de Preta e todas as mais em que a sua voz emerge, feliz e es­pe­ran­çosa, na pai­sagem triste das play­list dos en­la­tados ra­di­o­fó­nicos.

Dele dizia José Afonso ser «o mais co­ra­joso de nós todos». A ob­ser­vação apli­cava-se aos tempos do fas­cismo coim­brão, aba­lado por um canto novo que munia de hinos as vozes da­quele tempo. Seria sim o mais co­ra­joso, mas foi também o mais livre dos can­tores da sua ge­ração. Em Adriano Cor­reia de Oli­veira a mi­li­tância co­mu­nista não foi um de­talhe – foi a es­sência da sua (da nossa) pró­pria li­ber­dade.

Nas tuas mãos to­maste uma gui­tarra.
Copo de vinho de ale­gria sã
San­gria de suor e de ci­garra
que à noite canta a festa da manhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra
O que à Terra chamou amante e irmã
Mas também por­tu­guês que in­veste e marra
Voz de alaúde e rosto de maçã.

O teu co­ração de oiro veio do Douro
num barco de vin­dimas de can­tigas
tão ge­ne­roso como a li­ber­dade.
Resta de ti a ilha de um Te­souro
A jóia com as pe­dras mais an­tigas.

Não é sau­dade, não! É ami­zade.




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