O homem que cantava como um guerreiro

Manuel Pires da Rocha

Patxi Andion foi um dos que, cantando, lutou contra o fascismo, de um e do outro lado da fronteira

Pertence a uma dança ibérica o dito de que «povo que canta não morre». São palavras nascidas no círculo fechado dos que marcavam no terreiro os passos que a toada sugeria, passadas de geração em geração em dias de afirmação e festa. Mas estão longe de serem um sinal da inocência festiva de que o fascismo português quis mascarar a arte popular.

Quem junta num mesmo dizer as palavras povo, canção e morte, revela consciência de classe e do papel dos instrumentos de luta, de que são exemplos os cantos de protesto de camponeses e mineiros. A frase permaneceu verso de cantiga, mas já era convicção e comando conspirativo quando surgiu nos palcos da luta antifascista de Portugal e de Espanha – «palavra de ordem», agora, mas igualmente disposição comum e propósito colectivo. Ainda que o fascismo procurasse impor modelos sob a forma de «quem canta seu mal espanta», o canto ibérico que não era nacional-cançonetismo não se arrumou na condição de bibelô.

O trabalho dos chamados cantautores ou cantores de intervenção foi sempre o do jogral, que mesmo podendo vender palavras e cantos à classe dominante, era eco da sua própria condição. A História nunca os deixou a «cantar no deserto». Os cantautores ou cantores de intervenção faziam parte de um movimento alargado de artistas que, por sua vez, faziam caminho com os movimentos e organizações de massas que, no caso de Portugal e de Espanha, desafiavam o fascismo. E se assim o nomeamos – fascismo – sem lhe detalhar os institutos (censura, polícia política, organizações civis e militares) é porque o aparelho repressivo só fazia sentido enquanto guardião de todo um complexo de exploração capitalista. Não admira, por isso, que os cantos de um e do outro lado da fronteira ibérica falassem a uma só voz e cruzassem os seus destinos de luta pela emancipação (de que a liberdade faz parte).

Não admira, por isso, que muitos dos cantos antifascistas permaneçam úteis nestes tempos de «globalização» da exploração capitalista (ainda que tenhamos conquistado o direito a cantá-los agora à luz do dia).

Patxi Andion foi um dos que, cantando, lutou contra o fascismo, de um e do outro lado da fronteira. Daí que em 1969, no dia mesmo da apresentação no programa Zip-Zip da televisão portuguesa, tenha sido expulso de Portugal pela PIDE. Regressaria a Lisboa em 24 de Novembro de 1973, onde actuou no Cinema-Teatro Monumental, e mais tarde, em 24 de Março de 1974, num Coliseu dos Recreios superlotado e vigiado por agentes da PIDE/DGS. Voltaria muitas vezes mais, já depois da Revolução de Abril, e confessaria à Lusa, em 2017, que «a minha relação com Portugal, a música e a língua portuguesas é de absoluto amor e uma paixão, que existe desde a década de 1960».

Viveu uma vida cheia – foi compositor e cantor, actor, professor de Sociologia. Morreu há dias, num acidente de viação, quando comemorava os 50 anos de canções. Em Portugal será recordado como um daqueles que, cantando, lutaram contra o fascismo. E venceram-no, no meio de tanta gente.




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