Um nome para lembrar

Correia da Fonseca

Os te­les­pec­ta­dores que têm acesso ao canal His­tória, dis­tri­buído por cabo, pu­deram num destes dias en­con­trar um do­cu­men­tário cujo tí­tulo, Men­gele, talvez só fi­zesse um claro sen­tido para os mais ve­lhos, os que por uma ou outra razão guardam uma me­mória re­la­ti­va­mente pró­xima da Se­gunda Guerra Mun­dial, das suas tra­gé­dias e dos seus crimes. O caso é que Men­gele foi o ape­lido de uma cri­a­tura, Josef de seu nome pró­prio, que ficou tris­te­mente fa­moso em con­sequência dos muitos e pe­cu­li­ares crimes que co­meteu no ce­nário do campo nazi de ex­ter­mínio de Aus­chwitz. Mé­dico ali co­lo­cado, Josef Men­gele aplicou-se a fazer ex­pe­ri­ên­cias ci­rúr­gicas e ou­tras sobre pri­si­o­neiros que lhe eram en­tre­gues ale­ga­da­mente para pes­quisas «ci­en­tí­ficas». Os hor­rores daí de­cor­rentes são ine­nar­rá­veis, mas o «pen­sa­mento nazi» nem por um mo­mento se terá que­dado a avaliá-los: tra­tava-se de con­so­lidar num su­posto âm­bito ci­en­tí­fico o ca­minho para a ob­tenção firme de uma raça su­pe­rior, a her­ren­volk. Seria in­te­res­sante e de­certo pro­vei­toso ave­ri­guar se ne­nhum rasto desse mito da raça su­pe­rior so­bre­vive hoje nos herren da ac­tual Ale­manha in­dis­cu­ti­da­mente de­mo­crá­tica.

Um dever de au­to­de­fesa

Der­ro­tada a Ale­manha nazi, Josef Men­gele con­se­guiu es­capar ao jul­ga­mento e cas­tigo que o es­pe­ra­riam e re­fu­giou-se na Ar­gen­tina, país que foi então lugar de aco­lhi­mento de muitos nazis em fuga. Esse tra­jecto terá con­tado ne­ces­sa­ri­a­mente com cum­pli­ci­dades e apoios de di­versas na­ci­o­na­li­dades, não es­tando apu­rado se o nosso país foi ponto de pas­sagem deste e de in­di­ví­duos si­mi­lares, mas sendo con­tudo im­pro­vável a hi­pó­tese de vôo di­recto da Ale­manha para Bu­enos Aires. Na Ar­gen­tina, Men­gele viveu cerca de trinta anos, de­certo sem ves­tí­gios de re­morsos que o in­co­mo­dassem. Até que um dia, quando tran­qui­la­mente se de­di­cava à sau­dável prá­tica da na­tação, morreu afo­gado talvez na sequência de sú­bita do­ença car­díaca. En­tre­tanto, ha­viam sendo co­nhe­cidos por­me­nores das suas hor­ro­rosas prá­ticas «ci­rúr­gico-ci­en­tí­ficas» exer­cidas so­bre­tudo sobre cri­anças: eram de certo modo sur­pre­en­dentes pela cru­el­dade, mas de modo ne­nhum in­com­pa­tí­veis com o pen­sa­mento nazi. Por isso mesmo foi opor­tuna a trans­missão pelo His­tória da bi­o­grafia de Men­gele e da su­cinta evo­cação dos seus crimes. No mo­mento em que a ser­pente da ex­trema-di­reita dá claros si­nais de querer re­des­pertar, lem­brar o nome de Josef Men­gele é mais que uma ne­ces­si­dade: é um dever de au­to­de­fesa. Para que sai­bamos me­lhor o que pode es­preitar a Eu­ropa e por­ven­tura o mundo.




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