O joelho e o pescoço

Correia da Fonseca

Se, como se diz muitas vezes, uma imagem pode valer mais que mil pa­la­vras, aquela imagem que a te­le­visão nos trouxe de Mi­neá­polis, USA, con­firma a fór­mula. Muitos de nós, de­sig­na­da­mente boa parte dos te­les­pec­ta­dores do serão do pas­sado do­mingo, sa­bemos do que se trata: a imagem mos­trava um jo­elho de­certo ro­busto a pres­si­onar a gar­ganta de um homem pros­trado no chão. Mas dizê-lo assim não é dizer tudo: é pre­ciso acres­centar o que a imagem só por si não con­tava: que o jo­elho era de um po­lícia norte-ame­ri­cano e branco, que a gar­ganta era de um norte-ame­ri­cano negro, dito afro­a­me­ri­cano, e que a pressão se man­teve até que o negro morreu. A quem queira saber um pouco mais, de­sig­na­da­mente os an­te­ce­dentes ime­di­atos da­quela si­tu­ação, dir-se-á que o caso co­me­çara com a pre­sença de uma nota de dez dó­lares sem que haja in­for­mação de mais por­me­nores. É claro que dez dó­lares não são muito di­nheiro. Pelos vistos, porém foram na prá­tica o preço de uma vida hu­mana. Negra. Nos Es­tados Unidos da Amé­rica.

Uma nar­ra­tiva sin­té­tica

Quem acom­panha com al­guma atenção, mas não muita, a vida na grande nação ame­ri­cana pode ter sido le­vado a crer, com o de­correr do tempo e al­guma me­mória do pas­sado, que a questão ra­cial nos Es­tados Unidos perdeu muito, quase tudo, da enorme as­pe­reza que his­to­ri­ca­mente a ca­rac­te­rizou. Não é tanto assim. É certo que ter­minou a prá­tica re­gular de exe­cu­ções su­má­rias de ne­gros, que a Ku Klux Klan deixou de estar na moda nos es­tados do sul onde vi­ce­java com a bênção tá­cita das au­to­ri­dades quando não com a sua aberta cum­pli­ci­dade, que há al­guma pre­sença de es­tu­dantes ne­gros em ins­ti­tui­ções su­pe­ri­ores de en­sino, mas é cla­rís­simo que a su­pressão do ra­cismo e uma au­tên­tica pa­ri­dade ra­cial são outra coisa. Neste quadro, a imagem do jo­elho branco a pres­si­onar a gar­ganta negra vale como uma nar­ra­tiva sin­té­tica das re­la­ções inter-ra­ciais, e é por isso que o grave epi­sódio de Mi­neá­polis fez ex­plodir em di­versos pontos dos Es­tados Unidos pro­testos, ma­ni­fes­ta­ções, res­posta. Di­gamos que pa­ra­le­la­mente, a imagem da­quele jo­elho a as­sas­sinar um negro vale como tes­te­munho acu­sa­tório da fra­gi­li­dade de um en­ten­di­mento de­mo­crá­tico à es­cala na­ci­onal. E o que mais pode por­ven­tura im­pres­si­onar-nos é que eles, os Es­tados Unidos onde a cena ocorreu, mandam na maior parte do mundo. Onde es­tamos.




Mais artigos de: Argumentos

Pelo direito a ser criança e a ser feliz

Assinalou-se no dia 1 de Junho o Dia Mundial da Criança – um dia para lembrar que todas as crianças, independentemente das suas características, da sua origem, das suas condições económicas ou sociais, têm direito a um desenvolvimento harmonioso e integral. Mas um dia que não pode deixar cair...

Violências e direitos das mulheres na lei e na vida

Lusa Os tempos que vivemos, com as dramáticas consequências sociais e económicas da COVID-19, não escondem ou secundarizam, antes ampliam, a urgência de impedir o agravamento da exploração laboral, das desigualdades, discriminações e violências sobre as mulheres. Para lá da lei, a realidade...