A ordem

Gustavo Carneiro

Re­co­nheça-se ao menos isto: o im­pe­ri­a­lismo é hábil com as pa­la­vras.

Na mais re­cente edição das Lisbon Speed Talks, pro­mo­vida pelo Clube de Lisboa, um aca­dé­mico norte-ame­ri­cano de nome Da­niel Dexon de­fendeu que a emer­gência de novas po­tên­cias no ce­nário in­ter­na­ci­onal, a par de ou­tros fe­nó­menos, ameaça a «ordem mun­dial de­se­jada pelas de­mo­cra­cias li­be­rais e oci­den­tais». Dei­xemos de lado o autor e con­cen­tremo-nos na tese, que aliás não é nova. E, para lá das pa­la­vras, des­ven­demos os sig­ni­fi­cados: a que ordem se re­fere? Que sau­doso mundo era esse, nas­cido do mo­mento uni­polar dos EUA de que também fala Dexon?

Re­cu­emos três dé­cadas, até ao de­sa­pa­re­ci­mento da União So­vié­tica e do campo so­ci­a­lista eu­ropeu, mo­mento fun­dador dessa nova ordem mun­dial que – ga­ran­tiram – seria de paz uni­versal (lá está o tal jei­tinho para as pa­la­vras). Iro­ni­ca­mente, ou talvez não, o seu pri­meiro acto foi uma guerra, a do Golfo, que jun­ta­mente com o blo­queio que se lhe se­guiu pro­vocou mais de meio mi­lhão de ví­timas ira­qui­anas, muitas das quais cri­anças, a que se so­maram tantas ou­tras na agressão de 2003 e no caos por ela ela criado.

Na pró­pria Rússia, o FMI con­duziu a con­versão ao ca­pi­ta­lismo (re­bap­ti­zado então de de­mo­cracia) au­xi­liado pelos seus ho­mens de mão Iélt­sine e Gaidar e pelo flo­res­cente crime or­ga­ni­zado: a pi­lhagem da eco­nomia e o des­man­te­la­mento do Es­tado pro­vo­caram ele­vados ní­veis de de­sem­prego, po­breza e de­si­gual­dades e a re­dução drás­tica da es­pe­rança de vida. Ao de­sa­pa­re­ci­mento da ameaça co­mu­nista que desde o fim da Se­gunda Guerra Mun­dial servia de pre­texto à pre­sença mi­litar norte-ame­ri­cana na Eu­ropa, res­pondeu a NATO com o seu alar­ga­mento até às fron­teiras da (então) ajo­e­lhada Rússia.

A tal ordem de­se­jada pelasde­mo­cra­cias li­be­rais e oci­den­tais des­truiu e des­mem­brou a Ju­gos­lávia, dei­xando em seu lugar es­tados de­pen­dentes, al­guns pro­tec­to­rados e gi­gan­tescas bases mi­li­tares. Impôs pro­gramas de ajus­ta­mento eco­nó­mico e acordos co­mer­ciais de ín­dole ne­o­co­lo­nial, que le­varam mi­lhões à ruína. As su­ces­sivas crises que pro­vocou con­du­ziram a uma tal con­cen­tração de ri­queza que, em 2019, apenas 26 pes­soas acu­mu­lavam tanta como a me­tade mais pobre da po­pu­lação mun­dial, cor­res­pon­dente a 3,8 mil mi­lhões de seres hu­manos. A pan­demia cavou ainda mais este fosso.

A ordem que efec­ti­va­mente in­te­ressa está ins­crita na Carta das Na­ções Unidas e nada a es­pe­zi­nhou mais do que a tal he­ge­monia das de­mo­cra­cias li­be­rais. Res­gatar os seus va­lores fun­da­men­tais e as­se­gurar a sua con­cre­ti­zação são ne­ces­si­dades do nosso tempo, que só a luta li­ber­ta­dora dos tra­ba­lha­dores e dos povos será capaz de ga­rantir.

 



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