Arquimedes da Silva Santos: Um Homem (Fora) do Seu Tempo, de Miguel Falcão e Isabel Aleixo

Domingos Lobo

Ar­qui­medes da Silva Santos foi o mais jovem poeta da pri­meira ge­ração do neo-re­a­lismo

Cumpre-se, no ano em curso, o cen­te­nário do poeta e mé­dico Ar­qui­medes da Silva Santos, nas­cido a 18 de Junho de 1921, em Póvoa de Santa Iria.

Poeta neo-re­a­lista, com uma vida de er­rân­cias, por ra­zões fa­mi­li­ares, du­rante a in­fância e a ado­les­cência, vindo a in­te­grar, a partir de 1937 o grupo neo-re­a­lista de Vila Franca de Xira, com Mário Ro­dri­gues Faria, Carlos Pato, Júlio Goes, Emílio Lopes e, pos­te­ri­or­mente, com So­eiro Pe­reira Gomes e os nomes fun­da­dores do mo­vi­mento, Alves Redol, An­tónio Dias Lou­renço, Bona da Silva e Garcez da Silva. Ar­qui­medes foi o poeta mais jovem deste grupo ini­cial sendo o úl­timo re­pre­sen­tante deste nú­cleo a de­sa­pa­recer do nosso con­vívio, fa­le­cendo em 2019.

Em 1941, par­ti­cipou nos mí­ticos «pas­seios do Tejo». Em 1942, muda-se para Coimbra, in­gres­sando no curso de Me­di­cina. A sua paixão pelo te­atro leva-o a in­te­grar o TEUC. Co­nhe­cerá, nesse pe­ríodo, o grupo de Coimbra, li­gado ao Novo Can­ci­o­neiro e, com Jo­a­quim Na­mo­rado, João José Co­chofel, Carlos de Oli­veira e Rui Feijó, par­ti­ci­pará, a partir de 1945, na re­fun­dação da re­vista Vér­tice. O hino Com­pa­nheiros Unidos, do MUD, será pu­bli­cado nesse ano (1945), com letra sua e mú­sica de Fer­nando Lopes-Graça.

A sua obra poé­tica, pu­bli­cada entre 1938-1958, saiu em 2003, com o tí­tulo Cantos Ca­tivos: Po­emas co­li­gidos.

O livro Ar­qui­medes da Silva Santos: Um Homem (Fora) do Seu Tempo, de Mi­guel Falcão, en­saísta que or­ga­nizou, em 2013, um mag­ní­fico es­tudo sobre o te­atro de Alves Redol, e de Isabel Aleixo, é um re­po­si­tório pro­fu­sa­mente ela­bo­rado sobre a vida e obra de Ar­qui­medes, que enu­mera di­versos as­pectos desse per­curso, as vi­vên­cias, os amigos, as lutas, as dis­si­dên­cias, a fra­ter­ni­dade de uma ge­ração acos­sada e per­se­guida, as me­mó­rias e os de­poi­mentos dos amigos e com­pa­nheiros que com ele con­vi­veram nesse longo ca­minho de uma vida que tocou quase um sé­culo de exis­tência.

Livro or­ga­ni­zado com pe­da­gó­gico acerto, claro e aces­sível ao comum dos lei­tores, si­tu­ando a obra e o homem no seu tempo his­tó­rico (e não apenas o poeta, igual­mente o mé­dico é re­fe­rido de­mo­ra­da­mente neste texto), indo do acervo pes­soal ao ar­quivo do Museu do Ne­or­re­a­lismo, das longas en­tre­vistas que Mi­guel e Isabel re­a­li­zaram com o poeta a tes­te­mu­nhos de Dias Lou­renço, An­tónio Redol, Pedro Pita, Luís Au­gusto Costa Dias, Luiz Fran­cisco Re­bello e Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, entre tantos ou­tros.

De Ar­qui­medes da Silva Santos e da sua sin­gular voz no con­texto do neo-re­a­lismo emer­gente, dirá An­tónio Pedro Pita: «os doze po­emas que pu­blica até 1940, a maior parte deles em O Diabo, o mais pres­ti­giado órgão li­te­rário do tempo, si­na­li­zavam já a sin­gu­la­ri­dade de uma voz e de uma es­crita na po­li­fonia do ne­or­re­a­lismo.»

O le­gado poé­tico de Ar­qui­medes Silva Santos faz, por di­reito pró­prio, parte da his­tória do mo­vi­mento cul­tural e cí­vico mais im­por­tante do nosso sé­culo XX, par­ti­ci­pante ac­tivo nas suas ac­ções pri­mor­diais, na di­na­mi­zação de bi­bli­o­tecas, no te­atro, como di­ri­gente, actor e tra­dutor, como autor de po­emas de de­núncia das con­di­ções dos tra­ba­lha­dores ru­rais no tempo do fas­cismo, cons­tantes das Mar­chas, Danças e Can­ções, de Fer­nando Lopes-Graça: «[…] Ai campos, como os meus olhos,/​rasos de água tanta vez:/​foram-se es­pigas nos mo­lhos,/​vem fome para o cam­ponês.»

De A.S.S., es­creveu Dias Lou­renço: «A ins­pi­ração lí­rica e po­lí­tica que o guiou na sua cri­ação poé­tica do Hino do MUD nos di­fí­ceis anos 50, pi­o­neiro do Mo­vi­mento Neo-Re­a­lista em Por­tugal, ex­prime a sua per­so­na­li­dade de de­mo­crata, de homem de uma es­querda abran­gente que es­teve na ar­ga­massa do Abril por­tu­guês da Re­vo­lução.»

Este livro de Mi­guel Falcão e Isabel Aleixo, que tem a marca de qua­li­dade grá­fica desse editor raro que é José da Cruz Santos, para além do poeta e do mé­dico, fala-nos de um tempo, dos so­nhos e re­a­li­za­ções de uma ge­ração que com­bateu a ig­no­mínia e a ver­gonha – que lutou contra a in­dig­ni­dade do seu tempo em me­tá­foras que trans­por­tavam um de­sejo e uma es­pe­rança co­muns: Venha a cheia, a cheia venha/​co­brir mi­sé­rias e ais/​e nossa a cam­pina prenha/​com pa­poilas nos tri­gais.

Ar­qui­medes da Silva Santos: Um Homem (Fora) do Seu Tempo, de Mi­guel Falcão e Isabel Aleixo – Modo de Ler/​2021




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