Um neo-realista de raiz surrealista
António Domingues teve um percurso singular nas artes plásticas e longa militância comunista
António Domingues tem um percurso singular nas artes plásticas, a par de uma sólida opção política quando, nos anos 40, ainda jovem aderiu ao Partido Comunista Português, de que seria activo militante até ao fim da sua vida. É também nessa década que António Domingues, a acabar os seus estudos na Escola de Artes Decorativas António Arroio, trabalha paralelamente numa empresa litográfica onde apura e disciplina o seu talento nas artes gráficas.
António Domingues, Marcelino Vespeira, Fernando Azevedo e Moniz Pereira, que eram até esse momento praticantes activos da pintura neo-realista, tendo participado com notório êxito nas Exposições Gerais de Artes Plásticas, que era organizada anonimamente pela Subcomissão dos Jornalistas, Escritores e Artistas do Movimento de Unidade Democrática (MUD), um vasto movimento democrático que se opunha à ditadura salazarista-fascista que estava bastante abalada com a vitória dos aliados na II Guerra Mundial, sentem-se atraídos pelo surrealismo.
Esse núcleo de artistas reunia-se numa activa tertúlia no Café Herminius, onde se encontrava também Júlio Pomar que escreverá anos mais tarde «nunca ter escutado os cantos de sereia do surrealismo». A eles juntaram-se os poetas Mário Cesariny de Vasconcelos e Alexandre O’Neill, o crítico e historiador de arte José-Augusto França, que dão um novo impulso à tertúlia do Café Herminius que emigra para o Café Gelo, engrossado com novos elementos. Sucedem-se rupturas como a de António Domingues que, depois de explorar veredas surrealistas e abstractas retorna à matriz neo-realista, com um percurso muito singular por nela integrar um lirismo extremamente sensível por vezes com um excesso de elementos que obrigam um olhar distraído a um esforço de decifração para descobrir o seu desenho discursivo coerente que se pode considerar inédito no panorama das artes visuais nacionais.
Até haver uma ruptura mais funda, com polémicas violentas mas sem ataques frontais, entre neo-realistas e surrealistas, muitas pontes tentaram ser estabelecidas entre os dois movimentos. António Domingues, até pela sua activa militância no PCP, foi um dos protagonistas no estabelecimento dessas pontes e assim participa em vários cadavre-exquis (1) com Fernando Azevedo, António Pedro, Marcelino Vespeira e Moniz Pereira, em particular um com a dimensão de 1,50x1,80m que é, em todo o mundo, uma peça única pela sua envergadura. É a sua última participação surrealista mesmo depois de ter saído do grupo, não se recusando a colaboração nessa aventura colectiva o que é revelador da estatura humana e artística de António Domingues, um homem afável de um humor desconcertante e delicado.
Até à Revolução do 25 de Abril, desenvolveu muitos trabalhos nas artes gráficas sobretudo como ilustrador continuando a pintar, um trabalho continuado que surge nas Bienais da Festa do Avante!, e que será objecto de uma notável retrospectiva apresentada no Museu Nacional da Natureza em 1977 a que se seguiu outra na União dos Escritores Angolanos, ambos em Luanda, Angola para onde se tinha deslocado integrando-se na actividade de ressurgimento artístico desse país acabado de adquirir a independência, em linha com a sua ascendência africana, filho do sãotomense Mário Domingues, um prolixo escritor de grande sucesso. Retorna a Portugal, reintegra-se na Célula dos Artistas Plásticos do Sector Intelectual da DORL do PCP, o seu partido de sempre com quem nunca perdeu ligações. Duas exposições, uma em 1994, na Biblioteca Camões, outra em 1996, no Clube dos Jornalistas, mostram um trabalho continuado sem fissuras nem concessões que merece, agora no ano em que comemora o seu centenário, ser revisitada.
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(1) Cadavre-Exquis, em português Cadáver Exquisito, é um metodo inventado em França pelos surrealistas que subverte o discurso literário convencional em que os participantes num poema colectivo desconhecem o que anterior escreveu. A designação cadáver exquisito foi encontrada na primeira poesia escrita com esse automatismo «o cadáver exquisito beberá/ o vinho novo». Esse processo tornou-se extensivo às artes visuais.