O tecto

Correia da Fonseca

Foi pela cha­mada hora do jantar, não de­certo a me­lhor al­tura para que a te­le­visão nos in­forme de si­tu­a­ções amargas e ácidas, di­gamos assim: de qual­quer modo, o certo é que a CMTV es­co­lheu esse mo­mento para nos falar de fa­mí­lias que não têm tecto e pa­redes que as abri­guem, e isso não nas lon­juras de qual­quer re­moto lugar na pro­víncia mas sim na área me­tro­po­li­tana de Lisboa. É pos­sível que por vezes te­nhamos o sen­ti­mento ilu­sório de que certas si­tu­a­ções de pe­núria e/​ou de po­breza não acon­tecem na área da ca­pital; até que vem a te­le­visão (ou al­guém por ela) des­fazer-nos esse con­ven­ci­mento e contar-nos a re­a­li­dade. Foi esse o caso no pas­sado do­mingo, mas é claro que podia ter sido em qual­quer dos dias cha­mados úteis, pois ob­vi­a­mente em qual­quer deles a si­tu­ação é a mesma: as fa­mí­lias existem, o que não existe é o tecto que as cubra e que me­reça a pa­lavra «tecto».

O ine­vi­tável in­verno

A re­ve­lação terá sido sur­pre­en­dente para muitos te­les­pec­ta­dores: Lisboa é a ca­pital, é a ci­dade grande, e é plau­sível que o seu ca­rácter de grande urbe se alargue para lá dos seus ri­go­rosos li­mites ad­mi­nis­tra­tivos. O do­cu­men­tário, porém, era pe­remp­tório: aqueles ci­da­dãos não são o pro­duto fic­ci­onal de algum ar­re­medo de nar­ra­tiva neo-re­a­lista atra­sada no tempo (atraso que de­corre da cir­cuns­tância de o neo-re­a­lismo ter pas­sado de moda, como se os factos de que ele é ou foi cro­nista também ti­vessem de­sa­pa­re­cido); aquela gente existe, está aí, e co­e­xiste com cada um de nós mesmo que não demos por ela. Ora, uma re­por­tagem como esta com que a CMTV nos brindou terá sido capaz de nos chocar, e ainda bem: quase todos nós pre­ci­samos de re­ceber um certo tipo de cho­ques. Para que nos des­per­temos, ou me­lhor, para que não con­ti­nu­emos a fingir pe­rante nós pró­prios que es­tamos ador­me­cidos. É ver­dade: em Lisboa e seus ar­re­dores mais pró­ximos há ci­da­dãos por­tu­gueses sem tecto que os de­fenda. E, para lá da per­ma­nente inad­mis­si­bi­li­dade do facto, acon­tece que o in­verno vem aí e já não de­mora.




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