O pudim

Gustavo Carneiro

Os conceitos, quaisquer que eles sejam, só são úteis quando é claro (pelo menos para a maioria) aquilo que representam. Caso contrário, corre-se o risco de se achar que nos referimos todos ao mesmo quando, afinal, falam uns de alhos e outros de bugalhos.

O conceito de esquerda não constitui, a este respeito, qualquer excepção. Nas últimas semanas, tem-se falado muito da convergência da esquerda, das divergências à esquerda, do Orçamento também ele muito de esquerda. Mas o que é, então, isso de esquerda? Uma atitude? Uma proclamação? Uma tradição? Um posicionamento mais ou menos efémero que se afere apenas e só em relação com o de outros? Ou será algo mais?

Estaremos realmente todos a falar do mesmo?

Será possível colocar numa mesma categoria genérica de esquerda aqueles que assumem a valorização dos salários e o trabalho com direitos como factores de crescimento económico e progresso social e os que, curvando-se perante o poder económico, generalizam a precariedade e dão cobertura a despedimentos colectivos?

Podem ser de algum modo equiparados os que pretendem repor os prazos, montantes e condições de atribuição do subsídio de desemprego praticados antes da troika e aqueles que querem deixar tudo como está?

É aceitável amalgamar sob um mesmo conceito quem se bate por fixar médicos e outros profissionais de saúde no SNS e aqueles que por acção ou inacção promovem a sangria de milhares de médicos, enfermeiros e técnicos para o estrangeiro ou para o sector privado? Os que defendem um real investimento nos hospitais e centros de saúde e simultaneamente os que alimentam com avultados fundos públicos o sinistro negócio da doença? Pode ser de esquerda tanto o que defende o direito à habitação como o que facilita despejos, favorece a especulação e reserva centros históricos para o turismo e para os condomínios de luxo?

Ajudará ao esclarecimento público designar da mesma forma quem pretende controlar os preços dos combustíveis, no momento em que se encontram em máximos históricos, e quem observa passivamente o mercado a funcionar, não estando disposto a beliscar em um cêntimo que seja os interesses das petrolíferas? São semelhantes os que se batem pela criação de um serviço público de cultura e quem pretendia consagrar apenas 0,25% do Orçamento do Estado a este sector fundamental?

Fosse esclarecer e informar a intenção da generalidade da comunicação social e dos comentadores e politólogos e conceitos desta natureza seriam utilizados com maior prudência. No fundo, era importante que se passasse a falar mais de conteúdos e menos de rótulos sem correspondência com a realidade, pois no fim é isso que importa. Como diziam os clássicos, a prova do pudim passa por comê-lo.



Mais artigos de: Opinião

Alegre moda do «Pisca Pisca»

«Na educação, no trabalho, na Justiça, na função pública, na relação com os sindicatos, na afirmação do primado da política e na urgência de libertar o Estado de interesses que o condicionam. Seria preciso que o PS fosse capaz de se reencontrar consigo mesmo, com os seus valores» (11/07/2008). «Se há desigualdade e...

O castigo

A narrativa do conjunto dos comentadores e analistas, tal como a do Presidente da República e do primeiro-ministro, e mesmo dos partidos mais à direita, sobre o chumbo do Orçamento do Estado é, no fundamental, a mesma. Uma opinião que domina de forma avassaladora todo o espaço mediático assente na ideia de que o PCP...

Tragicomédia

A administradora da agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), Samantha Power, anunciou a semana passada, em Washington, a criação de um fundo global alegadamente destinado à defesa de jornalistas alvo de acções judiciais movidas por «governantes autocratas ou oligarcas». Os tais «autocratas...

Intervir com confiança

Após a comunicação do Presidente da República, anunciando a dissolução da Assembleia da República e a marcação de eleições para 30 de Janeiro, deu-se início à preparação da batalha eleitoral.

Sob o signo da estagflação

A recuperação económica mundial permanece incerta e desigual no rescaldo da «recessão pandémica» de 2020, a maior desde os tempos da Grande Depressão do século passado (superando a tempestade da crise financeira internacional de 2007-2009). Um relatório do JP Morgan prevê para os principais países capitalistas um...