Tragicomédia

Anabela Fino

A ad­mi­nis­tra­dora da agência dos Es­tados Unidos para o De­sen­vol­vi­mento In­ter­na­ci­onal (USAID), Sa­mantha Power, anun­ciou a se­mana pas­sada, em Washington, a cri­ação de um fundo global ale­ga­da­mente des­ti­nado à de­fesa de jor­na­listas alvo de ac­ções ju­di­ciais mo­vidas por «go­ver­nantes au­to­cratas ou oli­garcas». Os tais «au­to­cratas e oli­garcas», diz, são useiros em re­correr a mé­todos bru­tais, mas efi­cazes, «para matar his­tó­rias (peças jor­na­lís­ticas) que não lhes agradam – pro­cessam jor­na­listas até que os re­pór­teres aban­donem o as­sunto ou percam os tra­ba­lhos».

O apoio mo­ne­tário per­mi­tirá aos jor­na­listas «so­bre­viver a ale­ga­ções de di­fa­mação», ga­rante Power, que já está a pre­parar a Ci­meira das De­mo­cra­cias, a re­a­lizar on­line em De­zembro, onde a USAID vai lançar ini­ci­a­tivas para o «re­forço de­mo­crá­tico e com­bate à cor­rupção».

Sa­mantha Power, que serviu o Con­selho de Se­gu­rança Na­ci­onal da Casa Branca du­rante o pri­meiro man­dato de Ba­rack Obama e ficou co­nhe­cida pelo seu apoio à in­ter­venção mi­litar norte-ame­ri­cana na Síria e na Líbia, não se pro­nun­ciou sobre o caso de Ju­lian As­sange, de­tido em Lon­dres e a braços com a acção ju­di­cial que lhe é mo­vida pelos EUA. Também não consta que al­guém a tenha ques­ti­o­nado sobre o as­sunto, apesar de re­cen­te­mente ter vindo a pú­blico a in­ves­ti­gação le­vada a cabo pelo Yahoo News dando conta de que, em 2017, a CIA pla­neou se­ques­trar e as­sas­sinar o fun­dador do Wi­ki­Leaks.

É bem ver­dade que a in­ves­ti­gação, ba­seada em con­versas com mais de 30 ex-agentes dos EUA – oito dos quais des­cre­veram de­ta­lha­da­mente as pro­postas da CIA para se­ques­trar As­sange – foi ra­pi­da­mente aba­fada, var­rida para de­baixo do ta­pete das no­tí­cias re­quen­tadas, mas ainda assim, ca­ramba, não pode ser pura e sim­ples­mente ig­no­rada. Ou será que pode?

É ter­rível, como dizia há dias a se­cre­tária-geral da Am­nistia In­ter­na­ci­onal, Agnès Cal­la­mard, que quase 20 anos de­pois das de­nún­cias do Wi­ki­Leaks ne­nhum res­pon­sável por crimes de guerra dos EUA co­me­tidos no Afe­ga­nistão e no Iraque tenha sido res­pon­sa­bi­li­zado, muito menos pro­ces­sado, en­quanto o jor­na­lista que expôs tais crimes está na prisão.

Mais ter­rível ainda, por­ven­tura, é ver os al­gozes, com a co­ni­vência e ou o si­lêncio cúm­plice das «de­mo­cra­cias», serem ar­vo­rados nos guar­diões da li­ber­dade. Se não fosse trá­gico, seria hi­la­ri­ante.




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