Acolher refugiados, afirmar o humanismo, combater a xenofobia

João Oliveira (Membro da Comissão Política)

A discussão pública sobre o acolhimento de imigrantes/refugiados ucranianos transformou-se num espaço em que campeiam concepções e discursos xenófobos, com acusações graves feitas de forma leviana, num tom, em algumas circunstâncias, quase pidesco. E, invariavelmente, com o PCP no centro do alvo…

Portugal tem de rejeitar a suspeita como critério de decisão

Esta discussão arrisca agora transformar-se também numa operação de desresponsabilização do Governo e das entidades sob sua tutela, fazendo da Câmara Municipal de Setúbal o bode expiatório e encontrando na culpabilização do município a manobra de diversão que disfarce as suas próprias responsabilidades.

Há notícias públicas de que várias autarquias de Norte a Sul do País trabalham há largos anos com um conjunto de associações de cidadãos do leste europeu (russos, ucranianos e moldavos), designadamente Gondomar, Aveiro, Setúbal, Portimão e Albufeira. Mesmo que durante anos o acolhimento e integração de imigrantes e refugiados tenha sido realizado com sucesso em articulação com essas associações, parte-se agora da suspeita de que se trata de organizações ao serviço do presidente russo. A presidente da Câmara de Portimão (PS) elogia a eficácia do trabalho realizado e diz que mantém a confiança até provas em contrário, mas o presidente da Câmara de Setúbal (CDU) é crucificado em praça pública com as mais abjectas acusações e suspeições.

Além de trabalharem em articulação com várias autarquias, aquelas associações ou os seus dirigentes trabalharam com várias estruturas sob tutela do Governo, do SEF ao Alto Comissariado para as Migrações, do IEFP à Segurança Social e até mesmo alguns tribunais recorreram à sua colaboração. Com ou sem protocolos firmados, com ou sem serviços remunerados, aquela articulação com estruturas sob tutela do Governo existiu durante anos. Mas só em Setúbal parece que constitui um problema e é motivo de suspeição.

Critérios próprios

Outros desenvolvimentos mais recentes nesta discussão parecem apontar para um patamar de ainda maior gravidade, na medida em que algumas decisões do Estado português parecem ser agora determinadas por critérios de entidades que lhe são alheias.

Durante anos, o Alto Comissariado não deu sequência às queixas contra associações que integravam cidadãos ucranianos e russos porque considerou que não havia provas que as sustentassem. Mas ficámos a saber que recentemente decidiu retirar estas associações das suas listas de interlocutores, apontando em alternativa associações indicadas pela Embaixada da Ucrânia.

Não sendo dada informação sobre provas que entretanto tenham surgido a confirmar as queixas que antes foram consideradas infundadas, ficamos sem saber qual foi o critério para a decisão agora tomada. Mas ficámos a saber que essa decisão deixou de ter em consideração os critérios do Estado português, designadamente a lei nacional, e passou a ser determinada pelos critérios do poder ucraniano.

Assegurar o carácter humanista

Entretanto, a Câmara de Lisboa, apenas com os votos contra do PCP, decidiu desconsiderar as estruturas já existentes das próprias autarquias e da rede social local e entregar a responsabilidade dos apoios financeiros e de integração local a uma das associações indicadas pela Embaixada ucraniana, associação cuja intervenção pública tem ficado marcada por declarações dos seus dirigentes que constituem condenáveis ataques a princípios elementares do nosso regime democrático, manifestando um desrespeito pelos valores da democracia e da liberdade.

Vale a pena perguntar, como já foi perguntado na Câmara de Lisboa e na Assembleia da República, se o Alto Comissariado e a Câmara de Lisboa assumem a responsabilidade plena pelas consequências dessas decisões. Se estão conscientes, nomeadamente, dos riscos que essas decisões podem implicar para cidadãos que tenham saído da Ucrânia para fugir à guerra ou às perseguições e, chegados a Portugal, tenham de se identificar perante associações indicadas pela Embaixada ucraniana para poderem obter apoio, podendo ser imediatamente responsabilizados por serem desertores ou refratários ou sujeitos à perseguição a que procuravam escapar.

Portugal não pode importar o ambiente de um país onde a guerra, as perseguições políticas, étnicas ou culturais, a proibição de partidos ou o silenciamento de opositores são as determinantes da acção política do poder contra o seu próprio povo.

Portugal tem de rejeitar a suspeita como critério da decisão política, combater o discurso xenófobo que hoje estigmatiza uns e amanhã acaba a estigmatizar quase todos e assegurar o caráter humanista do acolhimento e integração de migrantes e refugiados.




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