Normalização

Anabela Fino

Com o aval do presidente do PSD, Luís Montenegro, o líder parlamentar do partido, Joaquim Sarmento, apelou a semana passada aos deputados sociais-democratas que votassem a favor do candidato do Chega à vice-presidência da Assembleia da República. Por seu turno, o PS deu liberdade de voto aos seus deputados, com Eurico Brilhante Dias a anunciar que iria votar contra.

O resultado foi novo chumbo, o terceiro, do candidato da extrema-direita, mas só por ingenuidade se pode pensar que a situação permanece inalterada. André Ventura não perdeu a oportunidade de o fazer notar, agradecendo a «normalização» do seu partido. A eleição de um vice-presidente do Chega para a AR, disse, representa a «normalização das relações que queremos ter com os restantes partidos e fica claro que em 2026 tem que haver esta normalização para uma solução governativa à direita».

O presidente do PSD concorda, embora se contorça em malabarismos políticos a fingir conservar resquícios de social-democrata. A necessidade de «normalização» é tanta que Montenegro veio esta semana apelar ao presidente da Assembleia da República que «use o seu magistério de influência junto dos grupos parlamentares» para ultrapassar o impasse, como se de uma mera questão formal se tratasse.

Mas é de substância que se trata. Pretende-se apresentar um partido protofascista, defensor da exploração capitalista e do assistencialismo, que tem as suas raízes no racismo, na xenofobia, no machismo, no populismo, na demagogia mais exacerbada, como parceiro «normal» da cena política nacional.

Como se extrema-direita fosse sinónimo de progresso e modernidade.

Como se bastasse suprimir a suástica e a saudação nazi, deixar crescer o cabelo ou evitar camisas negras para erradicar o espectro fascista que assola a Europa.

Como se bastasse haver eleições. Como se a história da UE não fosse a realidade plasmada no resumo do jornalista francês Jack Dion: «Em 1992, os dinamarqueses votaram contra o Tratado de Maastricht; foram forçados a voltar às urnas. Em 2001, os irlandeses votaram contra o Tratado de Nice; foram forçados a voltar às urnas. Em 2005, franceses e holandeses votaram contra o Tratado Constitucional Europeu (ECT); ele foi imposto sob o nome de Tratado de Lisboa. Em 2008, os irlandeses votaram contra o Tratado de Lisboa; tiveram que voltar a votar. Em 2015, 61,3% dos gregos votaram contra o plano de redução de gastos de Bruxelas, que mesmo assim lhes foi imposto.»

Como se, enfim, neste sistema em que vivemos a vontade dos povos não fosse manipulável para acomodar os interesses do capital.

As contas de Montenegro saíram furadas: cerca de um terço da bancada PSD não seguiu a orientação de voto e a «liberdade de voto» no PS não rompeu a linha vermelha. Mas a «normalização» começou e não pode ser subestimada.



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