O «putinista» Tchaikovsky

Filipe Diniz

Um «jornal de re­fe­rência» dito li­beral (Guar­dian, 8.12.2022) pu­blica mais um apelo à cen­sura cul­tural in­ter­na­ci­onal vindo do mi­nistro da cul­tura de Ze­lensky, Tka­chenko: «boi­cotar a cul­tura russa é um passo im­por­tante. Não es­tamos a falar em can­celar Tchai­kovsky, mas antes de fazer uma pausa na in­ter­pre­tação das suas obras até que a Rússia cesse a sua san­gui­nária in­vasão. As ins­ti­tui­ções cul­tu­rais ucra­ni­anas já o fi­zeram, a ele e a ou­tros com­po­si­tores russos. Ape­lamos aos nossos ali­ados a que o façam também.» Faltou apelar à queima de li­vros russos, como ou­tras «ins­ti­tui­ções» ucra­ni­anas já fi­zeram.

Por cá pouca gente terá ainda a des­fa­çatez de de­fender aber­ta­mente a cen­sura. Até a pró­pria «li­be­ra­li­zação» mar­ce­lista a quis elidir, mu­dando-lhe o nome e proi­bindo a pu­bli­cação da frase «vi­sado pela co­missão de cen­sura». O certo é que – sob ou­tras formas e meios – con­ti­nuou a existir. E em tais termos de nor­ma­li­zação que o facto de a Co­missão Eu­ro­peia proibir nove redes de co­mu­ni­cação russas pa­receu não causar grande im­pressão, tal como su­cede com o facto de as grandes redes so­ciais se­di­adas nos EUA terem ins­ta­lado um sis­tema de cen­sura e ex­clusão, tanto de opi­nião como de in­for­mação fac­tual.

O que é de algum modo novo no quadro ac­tual é a cen­sura não só tomar como alvo a ex­pressão pú­blica de opi­nião e de in­for­mação, é pre­tender alargar-se a todas as formas de ex­pressão hu­mana – e em par­ti­cular à sua di­mensão cul­tural e ar­tís­tica –, mar­gi­na­lizar cri­a­dores e ar­tistas, in­cluir a ra­sura e a re­es­crita do pas­sado na cen­sura do pre­sente.

Se a ofen­siva po­lí­tica contra a li­ber­dade tem re­per­cus­sões de­vas­ta­doras na cul­tura, a ofen­siva po­lí­tica contra a li­ber­dade cul­tural é hoje cen­tral na ofen­siva contra todas as li­ber­dades. É tempo de – também em sua pró­pria de­fesa – os cri­a­dores e ar­tistas a de­nun­ci­arem. O lugar da cul­tura e da arte é na livre cons­trução da paz.




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