A minha primeira Startup

João Frazão

A quem tenha dú­vidas de que a ofen­siva ide­o­ló­gica do ca­pi­ta­lismo tem li­nhas e pro­cura ter efeitos a partir do berço e não lhes sejam su­fi­ci­entes os exem­plos do filme de ani­mação Zo­o­tró­polis, em que o animal que re­pre­senta o fun­ci­o­nário pú­blico é uma pre­guiça – ado­rável, é certo, mas uma pre­guiça que há-de con­firmar a ideia es­pa­lhada pelos que vivem li­te­ral­mente à conta do Es­tado e de quem produz a ri­queza, de que os tra­ba­lha­dores da Ad­mi­nis­tração Pú­blica não fazem nada –, ou da Feira de Mini-Em­pre­en­de­dores para cri­anças do En­sino Bá­sico pro­mo­vida pela au­tar­quia da Ri­beira Grande, ou ainda as ac­ções que a Ju­nior Achi­e­ve­ment Por­tugal de­sen­volve em es­colas do País para «levar o em­pre­en­de­do­rismo para dentro das salas de aula», temos outro exemplo para apre­sentar.

Na ânsia de es­pa­lharem a pa­lavra do santo mer­cado, de pro­mo­verem as vir­tudes da ini­ci­a­tiva in­di­vi­dual, de en­deu­sarem o só não te safas se não qui­seres, vão fa­zendo nascer pro­jectos para educar o re­banho tão cedo quanto seja pos­sível.

A em­presa Sci­en­ce4you, que se de­dica à pro­dução e venda de jogos di­dá­ticos, apre­senta, pela mó­dica quantia de 19,99 euros, já com IVA, um jogo para idades acima de 6 anos cha­mado A minha pri­meira Startup, que é apre­sen­tado no sítio In­ternet da em­presa com um apelo di­recto a cada cri­ança: «aprende como criar um ne­gócio passo a passo e ganha ins­pi­ração para criar a tua pró­pria Startup! Des­cobre como en­con­trar uma fan­tás­tica ideia de ne­gócio e uma es­tra­tégia para o im­ple­mentar. Faz o teu pró­prio anúncio de te­le­visão en­quanto aprendes sobre mar­ke­ting. Cria um por­quinho me­a­lheiro e aprende a guardar os teus lu­cros.»

No con­teúdo da caixa co­lo­rida não faltam um «livro edu­ca­tivo» (até estou em pulgas para o des­fo­lhar), «mo­edas e car­tões de cré­dito», uma «má­quina re­gis­ta­dora mon­tável» e um «bloco de re­gisto de vendas».

Só não singra na vida, só não guarda os seus lu­cros quem não quer ou é, lá está, um pre­gui­çoso.

Os donos da Sci­en­ce4you apenas fi­xaram a parte de como guardar os seus lu­cros, e vai daí anun­ci­aram, pre­sume-se que como pre­sente de Natal, aos tra­ba­lha­dores que pro­duzem os brin­quedos e os fazem chegar às mãos das cri­anças que vão fazer um des­pe­di­mento co­lec­tivo.

Os tra­ba­lha­dores, a quem os car­tões de cré­dito de brincar valem de pouco, podem sempre, claro está, ini­ciar a sua pri­meira Startup. Vão mas é tra­ba­lhar!




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