Intocáveis

Manuel Rodrigues

A pú­blica ar­ro­gância de Pedro So­ares dos Santos (PSS), pa­trão do Grupo Je­ró­nimo Mar­tins (Pingo Doce), na dis­cussão em torno da es­pe­cu­lação pro­mo­vida sobre os bens ali­men­tares, é re­ve­la­dora do es­pí­rito que do­mina a classe que se julga «dona disto tudo». Pérolas como o diá­logo com a dis­tri­buição é pos­sível «desde que o Go­verno se torne ho­nesto» ou «os em­pre­sá­rios por­tu­gueses devem ter uma pa­lavra a dizer sobre a forma como o sector pú­blico gasta a ri­queza que o sector pri­vado cria», tra­duzem bem uma velha tese do PCP sobre o pro­cesso de re­cu­pe­ração mo­no­po­lista que a po­lí­tica de di­reita re­pre­senta: a evi­dente su­bor­di­nação do poder po­lí­tico ao poder eco­nó­mico.

PSS, que como ad­mi­nis­trador do grupo Je­ró­nimo Mar­tins re­cebeu em 2022 em sa­lá­rios, pré­mios e bónus mais de 2,7 mi­lhões de euros (a que acrescem os di­vi­dendos), as­sume como na­tu­rais os mais de 590 mi­lhões de euros de lu­cros al­can­çados pelo grupo em 2022 (um cres­ci­mento de 27,5% face a 2021). Va­lores al­can­çados pre­ci­sa­mente num ano em que o povo por­tu­guês foi mas­sa­crado com o au­mento dos preços e quando os tra­ba­lha­dores do Pingo Doce em­po­bre­ceram a tra­ba­lhar em con­sequência dos baixos sa­lá­rios que au­ferem. Uma re­a­li­dade que em 2023 ainda não se al­terou.

São, de facto, decla­ra­ções ar­ro­gantes de quem não se mostra agra­de­cido pelos bons ser­viços que o Go­verno vem pres­tando ao grande pa­tro­nato, que acabam por tornar mais evi­dente a razão do PCP quando afirma: pri­meiro, que as me­didas anun­ci­adas pelo Go­verno (no­me­a­da­mente, a me­dida do IVA-zero em 44 pro­dutos ali­men­tares es­sen­ciais), não re­solvem a questão fun­da­mental: a ne­ces­si­dade do au­mento geral dos sa­lá­rios (que o au­mento de 1 por cento na AP não re­solve) e pen­sões; se­gundo, que sem ga­rantir o con­trolo dos preços – me­dida fun­da­mental que o PCP já levou à AR e foi re­jei­tada por PS, PSD, Chega e IL – os preços não só não descem como se as­sis­tirá, na prá­tica, à trans­fe­rência de re­cursos pú­blicos, para per­mitir lu­cros fa­bu­losos à grande dis­tri­buição.

As me­didas agora anun­ci­adas não res­pondem à ne­ces­si­dade de co­locar os lu­cros da grande dis­tri­buição a pagar uma parte do es­forço a que as fa­mí­lias por­tu­guesas estão a ser su­jeitas.

Que PSS pense assim não es­panta. É ex­pressão da na­tu­reza dos seus in­te­resses de classe. O que é ver­da­dei­ra­mente in­qui­e­tante é que o Go­verno finjaig­norar os pro­blemas e mi­tigue so­lu­ções, para que esses in­te­resses con­ti­nuem in­to­cá­veis.




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