«Autos-da-fé»

Filipe Diniz

Há uma certa instituição histórica que no nosso país, entre 1540 e 1794, terá condenado 29.590 pessoas, queimado 1.175 na fogueira e outras 633 em efígie. Números que podem ser incompletos, porque de 689 autos-da-fé realizados desapareceu a documentação de 15.

A instituição chamou-se Inquisição, ou Santo Ofício. Andou por cá perto de três séculos a perseguir «hereges». Herege era qualquer um que não seguisse os dogmas da doutrina aprovada, e quem a conhecia em todo o rigor não eram senão os próprios inquisidores. Tinham carta branca para torturar até que fosse confessada a heresia.

Porque se fala aqui dessa tenebrosa instituição? Porque o medieval espírito inquisitorial se mantém em certas cabeças falantes. Basta assistir ao cortejo do comentário político mediático, nomeadamente quando se trata dos acontecimentos na Ucrânia.

Lembrar que o Santo Ofício ampliara em 1640 os seus alvos. Já não apenas os «hereges», mas os «fautores de hereges»: os que se negassem a testemunhar contra eles, os que pusessem obstáculos à sua perseguição.

É ou não isto que se passa quando alguém se atreve, já não a contrariar os dogmas da propaganda EUA/NATO/UE, mas de algum modo a divergir deles, mesmo com as maiores cautelas? Quando alguém se atreve a afirmar que esta guerra foi em boa parte provocada, e que quem a provocou e alimenta é tanto ou mais responsável pela tragédia? Quando alguém se atreve a defender que a solução para a guerra não pode ser mais guerra, mas a procura da paz?

Quem o fizer leva com o coro dos inquisidores (que vai do PS ao Chega). É condenado sem apelo: antes era o pacto com o diabo, agora é com Putin. Subjazem saudades do açoite, do degredo e da fogueira.

Pensar pela própria cabeça é heresia para esta gente. O «santo ofício» permanece vivo nos autos-da-fé mediáticos.




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