Três ilusões no OE 2024

Vasco Cardoso (Membro da Comissão Política)

Não pode ser iludido que a proposta de Orçamento serve sobretudo os interesses do capital

A proposta de Orçamento do Estado apresentada pelo Governo tem sido acompanhada por uma significativa operação de propaganda que procura iludir as verdadeiras opções e interesses que estão por detrás da política que está em curso, bem como as consequências que daí resultam para os trabalhadores, o povo e o País.

A primeira ilusão é, para simplificar, a ilusão monetária. Desde o dia 10 de Outubro que o Governo se tem desdobrado na apresentação dos números da sua proposta na qual tudo é maior do que no ano anterior. Na saúde, na educação, nas reformas, nos apoios sociais tudo é grande e maior do que alguma vez foi. O OE é o maior de sempre. Esta afirmação, sendo nominalmente factual, é uma ilusão que esconde o efeito da inflação, seja na arrecadação de receitas, seja na projecção de despesas, entre outros. É que o aumento generalizado dos preços começou no segundo semestre de 2021 e ainda não parou, estima o Governo, com algum optimismo, que no próximo andará pelos 2,9%. Tudo somado, estaremos a falar de uma inflação acumulada superior a 15% ou 16% neste período. Para exemplificar esta ilusão temos o aumento que está previsto nos salários da administração pública: 3% (poderá ser maior para os salários mais baixos em virtude do aumento do salário mínimo nacional). É de facto o maior aumento nominal dos últimos 10/15 anos, mas ele não cobre, nem de perto, o facto destes salários terem estado praticamente congelados durante uma década e cobre ainda menos a acentuada perda de poder de compra dos últimos anos. E assim, com o maior aumento de sempre os trabalhadores ficarão mais pobres do que aquilo que estavam há uns anos atrás.

A segunda ilusão é a que nos diz que só há um caminho para a redução da dívida pública: é preciso limitar salários e pensões, fragilizar os serviços públicos e o investimento público. Não se «pode gastar o que se tem e o que se não tem». É a tese das contas certas. Uma tese que parte de uma mistificação. É que a medição da dívida pública é feita por um rácio: dívida pública a dividir pelo PIB. Ou seja, é possível reduzir o endividamento não pela via da «austeridade», digamos assim, mas através de medidas de estímulo ao consumo (melhores salários e pensões) e ao investimento (produtivo) que promovam o crescimento económico e, por essa via, a redução da dívida mas com a vantagem de se responder aos problemas do presente e preparar, efectivamente o futuro num país que precisa como de pão para a boca de romper com o modelo dos baixos salários e investir em equipamentos, infra-estruturas, serviços públicos, capacidade produtiva.

A terceira ilusão é a do aumento dos «rendimentos» (e não dos salários) por via da redução de impostos, particularmente do IRS e da TSU (trabalhador e patrões). Essa espécie de magia na qual o salário fica na mesma e a malta ganha mais. Uma ilusão que esconde que quase metade dos trabalhadores por conta de ontrem não paga IRS, embora paguem impostos, bastantes aliás, designadamente o IVA sobre os bens de consumo onde gastam tudo (ou quase tudo) o que têm e no qual o Governo não mexe. Uma ilusão porque as opções fiscais deste OE alargam as benesses ao grande capital e aprofundam a injustiça fiscal. Uma ilusão que finge ignorar que os impostos são fundamentais para garantir a universalidade dos serviços públicos. Por exemplo, se não existisse SNS, um trabalhador português com uma doença crónica estaria condenado ou a empobrecer ou a morrer. E uma ilusão também porque no fundo põe os recursos públicos – receitas fiscais do Estado – e os recursos dos trabalhadores – receitas da Segurança Social – a financiar, por via da contenção dos salários, os lucros do capital. Esta é, aliás, a manobra da CIP que o governo acolheu. Uma opção que deixou o PSD, tal como o CDS, Chega e IL, sem argumentos substantivos para se distanciarem deste orçamento, pelo que sobrará a gritaria do costume.

O que não pode ser iludido é que a proposta de Orçamento serve sobretudo os interesses do capital. É preciso confrontar o Governo, as forças reaccionárias e o capital com a sua própria demagogia, tirar a máscara que esconde uma política injusta e incapaz de responder aos problemas. Apresentar soluções para o que é urgente, sem prescindir de afirmar um caminho alternativo que recuse a política de direita e assuma a dimensão patriótica e de esquerda que cada vez mais se impõe.




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