SNS – O ataque a um dos mais bonitos cravos de Abril

Jorge F. Seabra

A Saúde, antes do 25 de Abril, passou por poucos saltos evolutivos que nunca acompanharam o que acontecia na Europa mais desenvolvida, reflectindo o atraso e ausência de direitos a que a ditadura condenava a população portuguesa.

«Em poucos anos o SNS arrancou Portugal, um país pobre com os piores indicadores de saúde, catapultando-o para lugares cimeiros»

Só em Lisboa, Porto e Coimbra, existiam hospitais de maior dimensão, ligados ao ensino universitário, onde chegavam alguns sinais da medicina moderna.

Nas capitais de distrito, coexistia a caridade assistencial dos Hospitais das Misericórdias ou de pequenas unidades construídas por emigrantes enriquecidos ou “benfeitores” do regime, com consultórios e pequenas clínicas de médicos.

No interior rural, o acesso a cuidados de saúde era ainda mais limitado, com extensas áreas e regiões onde eles simplesmente não existiam ou permaneciam inacessíveis à multidão pobre, rota, descalça e desdentada, que labutava duramente de sol a sol para sobreviver, recorrendo a “curandeiros” e “endireitas” quando estava doente ou sofria fracturas ou traumatismos.

Vítor Ramos, médico especialista em Medicina Geral e Familiar, escreveu no livro «Médicos e Sociedade - para uma História da Medicina em Portugal no século XX» (Ed, By the Book, 2017):

«A assistência médica da população manteve-se muito limitada na primeira metade do século XX. Os clínicos Gerais trabalhavam então nos seus consultórios privados e era frequente ajustarem os honorários às posses dos consulentes e até prestavam cuidados gratuitos. Também trabalhavam em dispensários públicos e em serviços de ídolo caritativa. A parte mais pobre da população recorria às Misericórdias e a médicos pagos pelos municípios designados “médicos de partido.»

«A partir de 1946, após a segunda guerra mundial, foram criados em Portugal Caixas de Previdência, uma das consequências dos ventos da história a que o regime de Salazar se teve de ajustar para sobreviver politicamente.»

« ... (as “Caixas”) foram alvo do estigma de uma medicina de baixa qualidade enquadrada por burocratas que pesavam sobre tudo a quantidade de consultas.”»

Morria-se por doenças facilmente tratáveis, os partos eram feitos em casa (ou onde se podia), ajudados por vizinhas/parteiras treinadas pela prática, a mortalidade infantil era enorme (a mais alta da Europa), a expectativa de vida baixa.

Chegar onde era preciso
Foi essa triste realidade que a Revolução dos Cravos veio encontrar.

E logo nos primeiros anos após Abril, para além da implantação das Carreiras Médicas, o lançamento, em 1975, do Serviço Médico à Periferia, levou jovens médicos internos a saírem de Lisboa, Porto e Coimbra, para prestarem assistência às populações mais carenciadas do Interior do país, dando um primeiro passo para a criação de uma rede de cuidados primários e de proximidade de âmbito nacional.

Foram os jovens médicos que organizaram as condições logísticas necessárias à sua estadia nos concelhos e regiões mais pobres, aí levando os primeiros cuidados médicos gratuitos e organizados.

O SNP manteve-se de 1975 a 1982, dando, a partir de 1982, lugar à Carreira Médica de Clínica Geral a que se sucedeu a de Medicina Geral e Familiar.

Nas décadas iniciais, o SNS conseguiu desenvolver uma extensa rede de cuidados de proximidade e hospitalares, com integração de hospitais das Misericórdias e pequenas unidades privadas no sector público, levando auma cada vez maior fixação de médicos e outros profissionais.

Em poucos anos o SNS arrancou Portugal, um país pobre com os piores indicadores de saúde, catapultando-o para lugares cimeiros só alcançados pelos países mais desenvolvidos - em 2001, o SNS português foi classificado como o 12.º do mundo pela OMS.

Caminho de retrocesso
No final do século, com a acentuação da deriva de direita dos governos PS,PSD e CDS, assistiu-se a uma ofensiva das políticas neoliberais privatizadoras já prevalentes na Europa e ao aparecimento de grandes grupos financeiros ligados à exploração do “mercado” da Saúde.

Surgiram então as parcerias público-privado (PPP) e a contratação de empresas de trabalho temporário, iniciou-se a reprivatização das Misericórdias e imposição de contratos individuais de trabalho com quebra do vínculo à função pública dos profissionais do serviço público.

A partir daí, e a pretexto de o “modernizar” e adaptar “aos novos desafios”, o SNS viu-se inoculado por uma filosofia “empresarial” que tornou o financiamento das suas unidades dependente de “lucros” virtuais controlados por uma “nova classe” de chefias intermédias erigidas em capatazes da uma manada de “profissionais preguiçosos” necessitados de ajustadas doses de açúcar e chicote para “aumentar a produção” com resultados expressos em números e estatísticas sem rigor e sem sentido.

Ao longo das últimas décadas e sob tonitruantes anúncios de “revoluções” e “medidas estruturantes” que iriam resolver os problemas de um SNS, subfinanciado e tido como “insustentável”, assistiu-se à nomeação partidarizada dos cargos de chefia, “exteriorização” de dinheiro e doentes para o sector privado (*) destruição das Carreiras Médicas substituídas por desadaptadas classificações “de desempenho” e aofim do trabalho em “dedicação exclusiva”.

A fragmentação organizacional do SNS acentuou-se com a criação de “microempresas” de profissionais no interior dos centros de saúde (USF tipo A e B), dos hospitais (centros de responsabilidade integrada - CRI’s) e a chamada “municipalização”, com entrega às autarquias de parte dos investimentos e contratação de recursos humanos dos Centros de Saúde, tornando a rede de cuidados do SNS numa manta de retalhos.

Não por acaso, algumas destas medidas (implementação das USF), fizeram parte das exigências da troika e são actualmente (USF, CRI, “municipalização) condições para o pagamento de uma “tranche” de algumas centenas de milhões de euros atribuídos a Portugal no quadro do tão falado PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), numa demonstração da forma como a União Europeia condiciona a política interna do país, pondo-a ao serviço dos grandes grupos financeiros.

Com o crónico subfinanciamento e as medidas de “empresarialização”, o desenvolvimento explosivo do SNS das primeiras décadas foi sendo travado, tornando-se cada vez mais burocratizado, desumanizado e pouco atractivo.

A desastrosa política do PS
Face à fuga maciça para o estrangeiro ou para o sector privado de milhares de profissionais esgotados e mal pagos (**),o governo do PS preferiu ter as “contas certas”, conseguidas com ajustes de salários muito inferiores à inflação e cativações de verbas para a Saúde inscritas no Orçamento de Estado (***) aumentando a revolta dos que tinham sido tão elogiados durante o duro combate à pandemia do Covid 19.

Esquecendo a melhoria conseguida no primeiro mandato (viabilizado pelos partidos à sua esquerda) como resultado da, devolução de rendimentos cortados pela política “austeritária” do PSD/CDS, o governo de António Costa apanhou-se “livre” com a maioria absoluta, e virou à direita copiando Passos Coelho e a troika no empobrecimento dos portugueses «para o país ficar melhor».(****)

No que diz respeito à Saúde e ao SNS (há muito em crise) o Ministro Pizarro, andou a pisar ovos mais de um ano antes de avançar com propostas de aumentos salariais ridículos, indiferente à insatisfação dos profissionais e à cascata de encerramentos de maternidades, urgências, e serviços essenciais.

Foi esta desastrosa política do último governo PS, causadora de insegurança e desespero em muitas famílias, aproveitada por uma comunicação social ao serviço dos grandes interesses e profundamente anticomunista, que levou muitos eleitores a canalizarem os seus votos para os partidos de direita e da extrema-direita (como o Chega), não compreendendo que, para responder aos seus anseios, o que é necessário é aprofundar a democracia e não diminuí-la.

Inverter política privatizadora
Do novo governo PSD/CDS saído das últimas eleições nada há a esperar de bom.

O seu anunciado “plano de emergência” para a Saúde passa por criar USF tipo C (centros de saúde totalmente privados) (*****), por um maior recurso a contratos de médicos aposentados ou a empresas privadas, à telemedicina, (há muito usada como mezinha para disfarçar as insuficiências do SNS) e pela “motivação dos profissionais de saúde” que se adivinha apontar para prémios “de produtividade” ou de “desempenho”, limitando o necessário aumento geral dos salários.

Estas eram, de resto, algumas das “medidas estruturais” já iniciadas pelo Ministro Pizarro do governo PS,

Trata-se, no fundo, de variantes do processo habitual, resumido por Noam Chomsky, linguista e filósofo norte-americano:

«Esta é a táctica da privatização: cortar o orçamento para assegurar que as coisas não funcionam de forma às pessoas ficarem zangadas e usa-se isso como desculpa para passar a administração para as mãos dos privados».

Pode-se, pois, assegurar, que nada irá melhorar no SNS e que só invertendo a política privatizadora das últimas décadas e recuperando o seu espírito original de grande prestador público de cuidados de saúde de qualidade consignado na Constituição, será possível dar resposta aos problemas causados pela sua dolosa degradação.

 

* actualmente, cerca de 40% do orçamento do SNS é desviado para pagamento a entidades privadas.

** Segundo dados oficiais, nos últimos cinco anos, vinte mil profissionais, dos quais 5.043 médicos, saíram do SNS – DN, 7-2-24.

Segundo um estudo do economista Eugénio Rosa citado pelo Público, 7/8/23, os médicos, nos últimos dez anos, perderam 18% do poder de compra, tendo remunerações significativamente mais baixas quando comparadas com os outros países da União Europeia.

***segundo a Unidade Técnica de Acompanhamento Orçamental (UTAO), em 2003 só foi gasto 43% do dinheiro atribuído à Saúde no Orçamento do Estado.

**** O PS gabou-se de ter conseguido um excedente orçamental - 1,2% do PIB, 3.200 milhões de euros - ultrapassando as exigências da União Europeia (indo "para além troika"), sacrificando, entre outros, os profissionais de saúde, deixando que prosseguisse a sua debandada para o estrangeiro ou para o sector privado.

***** Os deputados do PCP, em requerimento apresentado à Assembleia da República em 7/11/2023, voltaram a propor a revogação da lei que permite a abertura de USF tipo C (já o tinham feito em 1012), argumentado contra o processo de privatização dos cuidados primários.

 



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