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João Frazão (Membro da Comissão Política)

A VW al­cança em Por­tugal um nível de ex­plo­ração ainda su­pe­rior ao das fá­bricas da Ale­manha ou da Bél­gica

Nas úl­timas se­manas, dis­seram-nos que o País podia ficar ali­viado. Como que caído do céu aos tram­bo­lhões, a Volkswagen anun­ciou que em 2027 a sua uni­dade in­dus­trial em Pal­mela pas­sará a pro­duzir um mo­delo de au­to­móvel eléc­trico da marca, as­se­gu­rando a pro­dução na fá­brica por vá­rios anos.

Tal anúncio me­rece uma re­flexão, pelas di­versas di­men­sões que com­porta.

Desde logo porque, con­fron­tado com a cen­sura po­pular a que o PCP deu justa ex­pressão na As­sem­bleia da Re­pú­blica, acos­sado pelas evi­dentes in­com­pa­ti­bi­li­dades entre as ac­ti­vi­dades de Mon­te­negro-em­pre­sário com as de Mon­te­negro-go­ver­nante, obri­gado a apre­sentar uma moção de con­fi­ança, o pri­meiro-mi­nistro de­cidiu re­correr à «coin­ci­dência» de uma das mai­ores em­presas ins­ta­ladas no País pro­ceder a um anúncio desta di­mensão, nessa manhã, de forma ar­ti­cu­lada com a co­mu­ni­cação so­cial, para ele pró­prio e os seus mi­nis­tros po­derem re­clamar para si os louros da fa­çanha.

Sa­cando o trunfo na jo­gada es­sen­cial, atira para o meio da As­sem­bleia o ar­gu­mento es­ma­gador: «vejam como o País está no bom ca­minho, que até este gi­gante do au­to­móvel vai pros­se­guir a sua ope­ração. É este o tra­balho que este exe­cu­tivo tem para apre­sentar.» Se al­guém ainda tem dú­vidas sobre o que tantas vezes temos afir­mado re­la­ti­va­mente à pro­mis­cui­dade que cresce entre o poder eco­nó­mico e o poder po­lí­tico, aí está este «jei­tinho» a dis­sipá-las.

Re­flexão também sobre o que re­pre­senta tal de­cisão e sobre quem se deve va­lo­rizar neste mo­mento.

Note-se que ela é to­mada após longos meses de no­tí­cias sobre a «crise» no sector au­to­móvel, de ame­aças de en­cer­ra­mentos de fá­bricas em di­versos países e mesmo de des­pe­di­mentos no sector e na pró­pria Volkswagen.

Que «crise» é esta de que se fala? Nos úl­timos anos os lu­cros do Grupo VW foram os se­guintes: 2020 – 8 334 mi­lhões de euros; 2021 – 12 253 mi­lhões de euros; 2022 – 14 867 mi­lhões de euros; 2023 – 16 013 mi­lhões de euros; 2024 – 10 721 mi­lhões de euros. Qual­quer coisa como 62 mil 188 mi­lhões de euros de lu­cros. Para quem está em crise, não está mal.

Ora, esta de­cisão tem na origem o rigor e pro­du­ti­vi­dade do tra­balho dos mi­lhares de ope­rá­rios da fá­brica da VW e das que lhe for­necem com­po­nentes, no com­plexo in­dus­trial e fora dele. Re­pare-se que a Au­to­eu­ropa tem hoje menos 1000 tra­ba­lha­dores do que em 2017, mas produz mais au­to­mó­veis. Ainda por cima com sa­lá­rios que são, em muitos casos, me­tade do au­fe­rido pelos seus co­legas que tra­ba­lham nas fá­bricas na Ale­manha ou na Bél­gica, ou seja, um nível de ex­plo­ração que é ainda maior do que con­se­guem nessas uni­dades.

Re­a­li­dade que o pri­meiro-mi­nistro ig­norou olim­pi­ca­mente no mo­mento de se en­feitar com os louros da de­cisão, não tendo uma pa­lavra se­quer de va­lo­ri­zação dos tra­ba­lha­dores e de exi­gência de me­lhoria dos seus sa­lá­rios e con­di­ções de tra­balho. Para bom en­ten­dedor, meia pa­lavra basta. E a au­sência de pa­la­vras também.

Resta ainda uma úl­tima di­mensão que tem par­ti­cular acui­dade nos de­bates ide­o­ló­gicos que atra­vessam a so­ci­e­dade por­tu­guesa sobre o papel do Es­tado.

Ao mesmo tempo que se abo­mina o Es­tado, se cri­tica o seu peso na eco­nomia e lhe são atri­buídas todas as culpas da falta de de­sen­vol­vi­mento do País, aí estão os grandes grupos eco­nó­micos pen­du­rados nas suas fraldas, a contar com os seus apoios, a re­clamar isen­ções de im­postos que aos pe­quenos em­pre­sá­rios são exi­gidos até ao úl­timo cên­timo. Veja-se que o cál­culo que, neste mo­mento, é feito sobre os apoios à Au­to­eu­ropa, só em lay-off, as­cende já a mais de 3,5 mi­lhões de euros. Já em 2015, foi co­nhe­cido que a UE au­to­rizou um apoio de 36 mi­lhões. Em Ja­neiro deste ano, o mi­nistro da Eco­nomia dizia que o Go­verno es­tava «em­pe­nhado em ali­nhar tudo o que sejam in­cen­tivos e con­di­ções» para que esta de­cisão fosse to­mada. Mira Amaral, ex-mi­nistro, con­firma o re­ga­bofe com a afir­mação la­pidar de que «não se con­segue um in­ves­ti­mento destes sem o apoio do go­verno», ex­pli­cando que «nor­mal­mente são in­cen­tivos fi­nan­ceiros e fis­cais e de­pois apoios na for­mação pro­fis­si­onal», apoios que o CEO da em­presa con­firma: «Gos­ta­ríamos de agra­decer o apoio do go­verno de Por­tugal, que nos pro­por­ci­onou as me­lhores con­di­ções.» Di­nheiros, esses sim, sub­traídos ao erário pú­blico que tanta falta fazem para res­ponder às ne­ces­si­dades so­ciais e às obri­ga­ções do Es­tado pe­rante a so­ci­e­dade.

Eis o sector pri­vado, o tal que gere bem, que é capaz de tomar as suas de­ci­sões so­zinho, que só pre­cisa que o deixem fazer. Uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto, diz o nosso povo. Mas estes vêm de car­rinho!

 



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