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Entrevista com Francisco Villa
O renascimento da trova chilena

O chileno Francisco Villa vai abrir os espectáculos da Festa de 2002, amanhã à noite, no Auditório 1.º de Maio. O Avante! foi conhecer este cantor da nova trova, herdeiro de nomes como Vítor Jara. Uma entrevista em que Villa fala sobre a música e a actualidade do Chile.

- Como surgiu a trova ou música de intervenção na tua vida?

- Pertenço a uma família de professores e o meu pai é músico. Ele ensinou-me a tocar guitarra em pequeno e mais tarde, durante a ditadura de Pinochet, comecei a conhecer clandestinamente a música de Vítor Jara, de Violeta Parra, de Sílvio Rodriguez, de Juan Manuel Serrat… e gostei. Tentei imitá-los e, com o tempo, foi tomando uma forma própria e as pessoas começaram a gostar do que fazia e a convidar-me a cantar. Desde essa altura passaram 17 anos, cultivando o género da canção poética com visão crítica do mundo.

- Qual o papel da música de intervenção no período da ditadura?

- Quando se deu o golpe militar eu tinha cinco anos. Formei-me sob uma ditadura, mas os meus pais ensinaram-me que havia outras crianças em situação diferente. Tive a possibilidade de ver o país e o mundo com olhos diferentes dos outros. Quando aprendei a fazer música percebi que esta é muito bonita, mas ainda se torna mais bonita quando serve para uma causa mais importante que a pura música e a pura poesia. Comecei a juntar-me com pessoas que faziam o mesmo que eu e começámos a fazer parte de grupos que iam às povoações, aos lugares marginais de Santiago e às universidades. Com as nossas canções fazíamos as pessoas pensarem, tentando recuperar a mística para combater a ditadura.

- E no período revolucionário?

- A música foi vital. Creio que sem o movimento cultural que existiu, Salvador Allende nunca teria conseguido ser presidente.

- Pelo esclarecimento que fazia?

- Sim e dava mística. As pessoas participavam na actividade política, mas o que os chamava era ouvir a música, ver os actores, ler os nossos poetas e escritores. A cultura foi fundamental para consciencializar as pessoas. O golpe militar cortou esse processo de consciência. A primeira coisa que a ditadura fez foi queimar livros, assassinar artistas, exilar os que ficaram vivos e tirá-los dos meios de comunicação. Tornava-se mais fácil de manipular o povo.

Tudo o que aconteceu antes do golpe teve que ver basicamente com a consciência das pessoas, mas através do trabalho cultural que fez a esquerda no Chile. O fundador do Partido Comunista Chileno, antes de constituir qualquer estrutura política, formou grupos de teatro e meios de comunicação, porque sabia que antes de formar um partido as pessoas tinham de ter consciência. A cultura esteve sempre vinculada ao trabalho político da esquerda chilena e em particular do Partido Comunista.

- Sentes-te herdeiro da música dessa época?

- Sim. Sou um elo da cadeia. Durante alguns anos fui o único elo entre a geração anterior e a seguinte. Foi um momento muito stressante, porque tudo caía sobre mim.

- Sentias-te só?

- Um pouco, mas agora há muita gente. Se não estivesse lá, a cadeia teria sido cortada. Tenho muito orgulho nisso.

- Vítor Jara continua a ter importância actualmente?

- Sim. Vítor Jara foi crescendo como uma figura poderosa. Tenho a impressão que nunca se imaginou em vida o que ia ser depois de morto. A sociedade chilena foi resgatando a figura de Vítor Jara. Apesar do sistema neoliberal, foi muito difícil deter a figura e o mito de Jara. As pessoas começaram a chamar o estádio onde ele foi assassinado de «Estádio Vítor Jara». Oficialmente chama-se «Estádio Chile», mas todos o conhecem assim. As novas gerações de artistas foram criando «Festivais Vítor Jara» e os jovens adaptaram as suas canções aos rítimos do rap, do reagge e do rock.

- Que lugar tem a nova trova no panorama musical chileno?

- Na América Latina em geral, a trova está a ser novamente considerada pelos meios de comunicação. Nunca deixou de existir, mas em alguns momentos pensou-se que tinha morrido porque os media, dominados pela direita e pelas grandes empresas, não mostrava o que fazia o canto de intervenção. No entanto, temos conseguido reerguer este tipo de canção, no só no Chile, mas na América Latina em geral. A América Latina está a passar um momento muito difícil nas suas economias e na consciência do povo. Neste contexto, o que fazemos tem muita importância para consciencializar.

- E estão a conseguir?

- Um pouco, mas sabemos que é uma tarefa grande e difícil que alguém tem de fazer. Nós orgulhosamente estamos a cumpri-la.

- Como chegam às pessoas, não tendo muito espaço nos media?

- É difícil, mas quando cantamos há muito tempo é difícil os media ignorarem-nos. No meu caso, nos primeiros anos, ninguém me tomava em conta. Hoje em dia já recebi prémios do «mundo convencional», inclusive dos media comerciais. Para isso não tive de mudar a forma de fazer as minhas canções. Como resisti, não lhes sobrou alternativa senão reconhecer-me.

- Gravavas discos e fazias espectáculos?

- Gravava, dava concertos, participava em convenções, fazia tournées e promovia encontros com outros artistas. Assim fomo-nos «infiltrando» nos meios de comunicação.

- Consegues sobreviver sendo apenas músico?

- Não. Uma maneira de conseguir dinheiro para continuar a desenvolver o meu trabalho é sair do Chile. Lá é muito difícil viver da arte. O Chile é o país em que o neoliberalismo está mais consagrado. É um laboratório do neoliberalismo. Tudo é experimentado no Chile antes de se levar ao resto do mundo. Os artistas estão no ventre do neoliberalismo. É muito difícil sobreviver. A maioria tem de arranjar outros trabalhos fora da arte. No meu caso, houve alturas em que fui professor de música e a minha companheira, além de música, é psicóloga. Entre os dois juntamos dinheiro e mantemos a casa.

- Tens memórias do período revolucionário? E da ditadura?

- Algumas. Lembro-me das concentrações a que o meu pai me levava, dos concursos de pintura com giz em frente ao Palácio da Moeda, do que se passava na minha família nesse período. A família da minha mãe era democrata cristã, opositores de Allende, e o meu pai era comunista. Lembro-me da tensão na família. Depois do golpe militar, a família materna passou também a fazer parte da oposição a Pinochet.

Depois de 11 de Setembro recordo-me muito claramente do bombardeamento do Palácio da Moeda. A minha casa ficava no centro de Santiago e estremecia de cada vez que faziam um bombardeamento. Ao lado da minha casa havia um quartel da polícia e alguns operários lutaram com os polícias. As balas iam e vinham na minha rua. O meu pai teve de esconder-se durante muito tempo. A imagem mais forte que tenho dos dias posteriores ao golpe foi quando o meu pai e alguns tios queimaram e enterraram livros no pátio de minha casa para não que não os encontrassem. Os militares chegavam à minha escola e arrancavam folhas de livros que diziam coisas que eles não queriam, tivemos de aprender outro hino nacional e obrigavam-nos a formar como num regimento. Começámos a ver que os pais de alguns dos nossos colegas já não voltaram mais.

Os chilenos e a crise argentina

- Hoje a sociedade chilena continua muito dividida. Ainda há uma grande influência de Pinochet e dos seus homens?

- Pinochet foi-se embora, mas a sua obra ficou. Antes de se ir embora, astuciosamente Pinochet fez uma nova Constituição de forma a condicionar todos os políticos que o seguiriam para constituírem governos de acordo com as regras que ele impôs. Pinochet tinha uma aliança com os empresários e os Estados Unidos e hoje o poder económico está nas mãos deles. A direita está no poder, porque os sectores democráticos anti-Pinochet (que hoje estão no Governo) acabaram por se integrar no modelo pinochetista e neoliberal. Até os socialistas que apoiaram Allende fazem agora parte de uma nova direita, apesar de dizerem que não o são.

Face a isto as pessoas não ganham maior consciência. Em vez de assumir uma atitude de luta, tratam de se fazer amigos dos poderosos. Daí o trabalho cultural ser tão importante para consciencializar. A esquerda e o Partido Comunista não conseguiram criar um sentido de unidade e objectivos comuns. Também fomos permeados por tudo o que acontece no Chile. Devemos exigir mais de nós próprios, ser mais auto-críticos, estudar mais.

- O Chile adoptou muitas das políticas que quase levaram a Argentina à bancarrota. Como se vive no Chile o problema económico argentino?

- A maioria dos chilenos que está neste jogo neoliberal tem uma atitude bastante orgulhosa. Teoricamente a situação é diferente no Chile. A Argentina sempre foi um grande país e sempre fez sombra aos chilenos. Com a crise argentina, o Chile passou a ser um país muito mais rentável dentro do sistema capitalista e mais respeitado pelo FMI e pelo Banco Mundial. Como não há consciência no povo chileno, agora crê-se muito melhor do que os argentinos.

- Não temem que possa acontecer o mesmo?

- Tenta-se fazer crer que o Chile é o país mais estável da América Latina, que constitui o grande modelo para a economia e que nada do que aconteça ao nosso redor nos vai afectar. A classe política chilena quase não se sente latino-americana, mas sim europeia. Isso é uma imensa mentira, porque a pobreza no Chile é de terceiro mundo. Os media só mostram o poder económico e os grandes interesses das empresas. Hoje o Chile é um país de pessoas submissas, por isso é fácil que os neoliberais fazerem o que querem.

«Avante!» Nº 1501 - 5.Setembro.2002