A presença de inúmeras delegações
estrangeiras na Festa do Avante! é sempre uma oportunidade para obter
informações sobre a situação que se vive nos respectivos
países e para perceber como vêem os que nos visitam esta grande
iniciativa do PCP.
Prosseguimos neste número a divulgação de depoimentos e
entrevistas recolhidos na Atalaia, que não sendo exaustivos são
certamente emblemáticos dos laços de amizade e solidariedade que
ligam o PCP às forças revolucionárias e progressistas de
todo o mundo.
A palavra a Luís Fernandes, do CC do Partido Comunista do Brasil, e a
Miloslav Ransdorf, do Partido Comunista da Boémia
e da Morávia
Entrevista com Luís Fernandes,
membro do Comité Central do PCdoB
Mudar o Brasil
Miguel Inácio
As eleições gerais, que se realizam em Outubro, no Brasil, envolvem, para além da escolha do presidente da República, dois terços do Senado, os Governos Estatais, a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas. O futuro do Brasil está em jogo, e o PcdoB, ao mesmo tempo que se empenha na unificação das forças da oposição para derrotar o neoliberalismo, tem os seus próprios objectivos eleitorais. O Avante! falou com Luís Fernandes, membro do Comité Central do PCdoB, para saber um pouco mais sobre as eleições que se irão desenrolar no próximo mês.
Quais os pontos principais do programa eleitoral do PcdoB?
O PcdoB pretende, com as eleições deste ano, transformar o modelo de desenvolvimento económico e social no Brasil. E isso traduz-se, fundamentalmente, na defesa de uma agenda nacional. A política liberalizadora, que predominou durante da década de 90, parece assim estar a chegar ao fim do seu ciclo. Os governos foram incapazes de lançar o Brasil numa fase de desenvolvimento económico e social. Entretanto, e segundo o programa eleitoral do PcdoB, é indispensável alterar as bases do financiamento da economia brasileira que é totalmente dependente do capital especulativo.
Pode-nos dar alguns exemplos da política liberalizadora, dos últimos anos?
O Brasil importa, por ano, cerca de 50 mil milhões de dólares para pagar as suas dividas externas. Para fazê-lo, o governo paga uma taxa que é simplesmente a mais alta do mundo. O Estado brasileiro transformou-se, assim, numa gigantesca marca de transferência de riqueza da sociedade para esse capital especulativo que é quem se beneficia do modelo montado nos últimos 12 anos.
Esta é a questão chave que o PcdoB defende, à qual se associam medidas de reconstituição de instituições nacionais, empresas estatais estratégicas privatizadas com este governo, aplicar uma política activa de reforma agrária, onde se irá concentrar a propriedade da terra, e a defesa dos direitos sociais ameaçados pelo antigo governo. Este é o programa eleitoral do PcdoB, nele está estruturada a ideia de um novo projecto nacional de desenvolvimento.
Como se dá a aliança com o Partido dos Trabalhadores ?
O PCdoB sempre defendeu uma política de alianças, ou seja, de acordo com cada momento político do país, tentar compor forças mais amplas para uma solução progressista das tarefas de cada momento. Em relação à coligação com o Partido dos Trabalhadores (PT), desde que se restabeleceram as eleições presidenciais no Brasil, em 1989, o PCdoB tem procurado constituir uma alianças com o PT, especificamente com a candidatura do Lula.
Isso foi feito em 1989 com a Frente Brasil Popular, constituída pelo PT, PCdoB, o Partido Socialista Brasileiro e o Partido dos Verdes. E de certa forma, com algumas variações, esta ideia de composição de forças manteve-se em 1994 e em 1998.
E nestas eleições?
Esta aliança é mais ampla do que uma simples composição de partidos de esquerda. Tem no núcleo o PT e o PCdoB, mas dirige-se a outros sectores sociais. Temos, actualmente, um caso bastante polémico na nossa coligação, mas que para nós foi muito importante, que é a aliança com o Partido Liberal, partido do actual candidato a vice-presidente do Lula, que é o José de Alencar, grande industrial da área dos têxteis.
A composição de uma aliança com o Partido Liberal é um sinal importante de que as coisas tem que mudar. É uma coligação que traz forças dos sectores empresariais nacionais para construir a construção de um novo modelo económico.
Que outras forças políticas apoiam esta coligação?
Para além desta aliança existem outras forças que apoiam a candidatura do Lula. É o caso de José Sarnei, o primeiro presidente depois da democratização, e que representa o sector político do Nordeste. O actual governador do Estado de Minas Gerais, Itamar Franco, que foi presidente da República, antes do Fernando Henriques, também apoia a candidatura do Lula.
O que representa a candidatura do Lula para o Brasil?
A candidatura do Lula é um o canal da insatisfação política dos diversos sectores da sociedade brasileira, não só da esfera popular e da esquerda mas também da classe média e empresarial que se sentem prejudicados pela dinâmica do modelo liberal.
Este ciclo político está a chegar ao fim. Apresentou-se à sociedade brasileira como uma alternativa à crise do individamento do antigo modelo. Passados dez anos, revelou-se exactamente o inverso, afundando o Brasil numa crise de desenvolvimento ainda mais grave que a anterior. O actual governo tornou o pais vulnerável às pressões especulativas do capital internacional e foi incapaz de sustentar um tipo de desenvolvimento que teve até então.
O Lula é o única candidato que tem uma abrangência nacional. Os outros partidos são sectorizados, este é o segredo e a força desta coligação.
Que dificuldades irá encontrar esta coligação após as eleições?
A disputa, neste momento, está centrada, não no primeiro lugar, mas no segundo, que se vai dar entre o candidato do governo que é o Serra e o candidato da oposição, Siro Gomes. Entretanto, mesmo que o Lula vença estas eleições, a esquerda, na totalidade, não vai ter maioria no Congresso. Hoje a esquerda tem um total de cerca de cem deputados em quinhentos, na Assembleia de Deputados. Se tivermos um bom resultado passamos para 150 deputados, ou seja, continuamos a ser minoritários.
Entretanto, os governos de cada Estado tendem a ser conquistados por governadores que estão fora da nossa coligação, isso torna quadro político muito complexo de difícil. Mesmo que vençamos a presidência da República vamos ter que ceder aos governadores que não estão coligados com esta aliança.
Qual a posição do PcdoB sobre a Associação de Comércio Livre da América (ALCA)?
O PCdoB é totalmente contra a ALCA. Realizamos, juntamente com outras organizações sociais e com a igreja, um plebiscito de decisão e concretização sobre o que é a ALCA e o risco que representa para o Brasil.
É uma batalha que conta com a participação, e mobilização, dos brasileiros através de inúmeras manifestações e debates promovidos pelo PcdoB. Na sociedade brasileira há um consenso geral contra a ALCA, mesmo nos sectores empresariais que se sentem ameaçados pela agenda norte-americana para o Brasil e a agenda da ALCA.
Entretanto, a posição do governo brasileiro tem-se traduzido numa posição de endurecimento nas negociações para a adesão à ALCA, colocando como pré-condição, para qualquer negociação e a aceitação da parte do Brasil, condições que foram explicitamente negadas e aprovadas pelo congresso norte-americano e pelo presidente George W. Bush.
Está-se a criar uma oposição favorável do povo
brasileiro que anseia um novo rumo para o desenvolvimento, diferente do actual.
Miloslav Ransdorf
do Partido Comunista da Boémia e da Morávia:
«A Festa que o povo se ofereceu»
«Li em tempos uma consideração escrita por Goethe acerca do Carnaval romano. Descrevia a fantástica atmosfera decorrente da espontaneidade com que as pessoas conviviam livremente e a alegria que se proporcionavam uns aos outros. Para concluir que não se tratava de uma festa que alguém de fora tivesse estabelecido: é a festa que o povo romano se ofereceu.
Sentimento semelhante é aquele que me ocorre sempre que juntamente com os camaradas portugueses vivo a Festa do Avante!. Estas maravilhosas camaradagem e alegria que aqui se juntam de novo. Paro sempre junto ao stand do Alentejo, onde pessoas que vivem espalhadas pelo país aqui formam coro. Surgem novos cantares! Irrepetíveis no dia-a-dia são o convívio de gerações e a partilha de experiências e de modos de vida. A Festa é como que uma enciclopédia do quotidiano português.
Não se trata, no entanto, de uma questão passageira, do momento. Sinto que é uma antevisão do futuro, uma ilha do futuro dentro do presente. Nesta tão fracturada sociedade actual, tais ilhas de solidariedade e partilha são extremamente necessárias. Aos comunistas compete fazer com que elas existam cada vez mais e que se entrelacem mutuamente. O imediato e o espontâneo têm de ter lugar, apesar da complexidade das relações humanas.
Ainda isto: nesta época mediatizada, onde a verdade anda coberta por uma incrível inundação de mentiras, meias verdades, banalidades e declarados disparates, uma das tarefas dos comunistas consiste na defesa do racionalismo e do pensamento crítico. Como se de «arqueologia política» se tratasse: escavar a verdade até à superfície. O fenomenal consome uma parte cada vez maior da nossa vida. É imprescindível o jornalismo crítico, com que o nosso movimento teve a sorte de ser brindado no passado: basta referir nomes como Kisch, Fucik ou Cunhal. O Avante! é uma plataforma importante, onde a tal «arqueologia da verdade» pode ser praticada. Tanto mais que a verdade não é algo de inerte.»
«Avante!» Nº 1504 - 26.Setembro.2002