Artigo anterior  Próximo artigo


Malevich e o cinema

ARTES PLÁSTICAS  • Manuel Augusto Araújo

De um "auto-retrato" de MalevichNeste país ninguém escreve sobre Malevich. Provavelmente isto acontece porque o seu Quadrado Negro em fundo branco é ainda um obstáculo para os nossos críticos do dia profundamente hesitantes acerca do que representa: a decadência da burguesia ou a ascensão de uma classe jovem, o proletariado.

Aleksei Gan,1927     

Em 1923, Walter Benjamin escrevia:«Para mim é um dado adquirido que a história de arte não existe». O que se pretendia exprimir com esta síntese, e Benjamim não teve tempo para a explorar, talvez fosse o desejo de ver um renascer da história de arte expurgada dos códigos de linguagem dos comentários históricos e feita a partir dos problemas que as obras, elas-próprias, colocam, situando-se na geografia social do seu tempo.

É o entendimento da arte enquanto arte e enquanto parte activa do pensamento filosófico, político e social do tempo real em que são contextualizadas.

Esta é uma questão emergente em toda a arte que se fez nas primeiras décadas da Revolução Soviética, e é extremamente estimulante rever as experiências dessa época efervescente e o pouco que foram aprofundadas conceptual e teoricamente e o muito que foram formalmente apropriadas.

A exposição Malevich e o Cinema (Centro Cultural de Belém) é disso um exemplo que dá largos espaços de reflexão.

Uma montagem cuidada enquadra o trabalho de Malevich com fotogramas de Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, cartazes de cinema e outras intervenções de artistas soviéticos dessa época, como Gustav Klutsis, El Lissitzky, Aleksei Gan e vários anónimos, que tinham preocupações similares e eram radicais na análise do estatuto, da intervenção e das formas da arte nos novos tempos, os tempos da Revolução Bolchevique e do triunfo do proletariado,o que os conduzia à negação e a um corte definitivo com os conceitos tradicionais da arte, e depois artistas contemporâneos como Yves Klein, Richard Serra, Allan McCollum, Eric Bulatov, Ilia Kabakov ou Sol Le Witt, que de um ou outro modo recuperam o experimentalismo dos suprematistas, construtivistas e futuristas soviéticos, para recolarem os objectos artísticos com o estatuto de obras de arte, exactamente o que tinha sido negado e estava na raiz das obras que constituem o núcleo central da exposição. Com estes artistas nossos contemporâneos, a história de arte volta a existir com a ganga dos estereótipos da história que Benjamin dava como adquirido terem sido expurgados. A arte readquiria a aura o que lhe conferia um valor material de troca mas perdia o seu valor social de uso.

E esta é uma questão que está na ordem dos nossos dias.

  Controvérsia

Desde que surgiu, o Quadrado Negro, foi objecto de controvérsia entre os artistas seus contemporâneos igualmente empenhados em produzir uma arte nova para os tempos novos. Uma arte que fosse um corte radical com o passado.
Que queria Malevich interrogavam-se: «A abstracção total? A representação gráfica da forma?» e argumentavam «Caso olhemos para o quadrado sem fé mística ,como se fosse um verdadeiro facto terreno, que é ele então?» (Varvara Stepanova, destacada construtivista).

Nesse mesmo ano Malevich parte para Vitebsk, onde funda o grupo «Os Promotores da Nova Arte» e procura responder a essas questões teorizando sobre o apagamento da importância do autor, condenando as actividades estéticas individuais e transferindo as suas actividades da pintura de estúdio para o ensino e a decoração das ruas, actividades que aumentam grandemente a divulgação pública do Quadrado Negro, que se torna um elemento gráfico determinante nas artes gráficas soviéticas e na radicalização das práticas artísticas, interessando-se mais pelas relações entre a pintura e o cinema até porque há um óbvio paralelo entre o Quadrado Negro e o fotograma da película cinematográfica.

Eisenstein e Vertov eram para Malevich, artistas de primeira classe. Em Vertov, a distanciação do seu cinema em relação ao realismo da cinematografia tradicional atraia-o, por aí encontrar a única possibilidade de encontro do abstracto e do real. Em Eisenstein elogiava o que ele só conseguia filmar com o conhecimento profundo do cubismo, do futurismo e do suprematismo. Via no cinema o futuro da arte desde que se conseguisse libertar da tralhas do quotidiano, das historietas, e ser a melhor possibilidade de «após temperarmos as lentes da nossa câmara na ainda-por-experimentar dinâmica da vida metálica e industrial-socialista, conseguirmos ver um mundo novo que ainda espera mediação».

Há todo um período da história das artes que ficou suspenso por falta de condições histórico-sociais para evoluir. Dele se prolongam os reflexos de uma fortíssima influência formal. É muito, mas é muito pouco para todos os que o iniciaram com a convicção que estavam a produzir um corte radical com a história, que estavam a dar «o salto de tigre a céu aberto» a bela metáfora de Benjamin para a revolução marxista.

«Avante!» Nº 1504 - 26.Setembro.2002