Numa casa clandestina

O passado não se apaga de repente

Margarida Folque
O carácter alegre ajudou-a a sobreviver. Atrás da gargalhada pronta esconde as dores do passado. Hoje, 29 anos depois do 25 de Abril - que a apanhou de surpresa numa casa clandestina da Amadora - Mariana Rafael desdramatiza a sua vida, dizendo que «valeu a pena». O seu semblante carrega-se, contudo, quando recorda algumas situações.
Nas­cida na clan­des­ti­ni­dade há 54 anos, filha de pai su­pos­ta­mente «co­mer­ci­ante de sal» e de mãe «do­més­tica», Ma­riana foi en­viada aos dois anos e meio para casa da avó por «falar de­mais», re­gres­sando aos sete anos ao con­vívio dos pais, seis meses apenas de­pois de ter co­me­çado a fre­quentar a es­cola. «Talvez tenha sido este o mo­mento mais do­lo­roso da minha vida», conta, «aban­donar a es­cola e as cri­anças com que então co­me­çava a dar-me». De­pois, «o tempo vai pas­sando... e aos 25 anos, voltei a viver».
Até ao 25 de Abril, aquele foi o único pe­ríodo que Ma­riana viveu na le­ga­li­dade, o único em que re­al­mente foi cri­ança. O resto da sua in­fância passou-a a ajudar o pai na com­po­sição e fei­tura da im­prensa par­ti­dária, a brincar so­zinha ou, raras vezes, com ou­tras cri­anças, junto dos quais era obri­gada a re­pre­sentar um qual­quer papel, o que lhe cau­sava um per­ma­nente es­tado de tensão ner­vosa. Tensão que deixou se­quelas, ainda hoje vi­sí­veis nos seus re­gistos clí­nicos.
Sem me­ni­nice, Ma­riana en­trou na ado­les­cência, vendo-a passar ao lado, nos jo­vens da mesma idade que pas­se­avam na rua a rir ou de mãos dadas. Co­meçou, então, a de­sem­pe­nhar a «in­grata» ta­refa - que toda a vida cou­bera à mãe - de ga­rantir a se­gu­rança da casa clan­des­tina onde vivia e de onde muitas vezes era obri­gada a «saltar». Foi, porém, esse es­forço per­ma­nente que lhe per­mitiu viver uma vida in­teira na clan­des­ti­ni­dade sem ser presa ou lo­ca­li­zada pela Pide.

A pri­meira ale­gria

Em 1969 co­nheceu o seu com­pa­nheiro - de quem teve dois fi­lhos, o Sérgio e a Ca­ta­rina -, tendo co­me­çado a sua vida em comum numa casa da Rua An­ge­lina Vidal, em Lisboa, que mais tarde viria a aban­donar no­va­mente por ra­zões de se­gu­rança.
Quando ficou à es­pera de um filho, pôs-se-lhe a questão de como o ter. Mas, afinal, lembra, «foi sur­pre­en­den­te­mente fácil», graças ao apoio de Maria da Pu­ri­fi­cação Araújo, que a acom­pa­nhou nessa hora, e de Graça Mexia, que a pre­parou para o parto psi­co­pro­fi­lác­tico. Ambas co­nhe­ciam bem a sua si­tu­ação, como aliás a de ou­tras clan­des­tinas que da mesma forma ge­ne­rosa aju­daram. «Assim, tudo correu bem, es­tive in­ter­nada no Hos­pital Par­ti­cular e tudo», diz a rir.
Mas, «fe­liz­mente», re­corda também, fe­chando um pouco o sem­blante, «o 25 de Abril deu-se pouco de­pois, senão, mais dia menos dia, ser-me-ia co­lo­cada a do­lo­rosa si­tu­ação de ter de me se­parar dos meus fi­lhos, como acon­teceu com os meus pais».
Viria, ainda, a co­nhecer duas casas em Lisboa, até ins­talar-se na Ama­dora, onde o 25 de Abril a en­con­trou.
Esse dia foi para Ma­riana de «uma imensa ale­gria!». A adap­tação à le­ga­li­dade foi, con­tudo, muito di­fícil, muito do­lo­rosa. «Hoje falo disto mas du­rante muitos anos não con­se­guia falar».
De facto, o pas­sado não se apaga de re­pente e, para Ma­riana, tudo era novo: poder andar li­vre­mente na rua, sem o per­ma­nente re­ceio de ser in­ter­cep­tada pela po­lícia fas­cista, sem ter que vi­giar tudo e todos à sua volta, sem pre­cisar de estar sempre a re­pre­sentar. Ser «ela pró­pria» era uma no­vi­dade. A única coisa que dava uni­dade à sua vida era o facto de con­ti­nuar a tra­ba­lhar para o PCP.

O per­curso «aca­dé­mico»

Apesar de apenas ter fre­quen­tado a es­cola du­rante seis meses, Ma­riana pros­se­guiu os seus «es­tudos», que iam da li­te­ra­tura à ge­o­grafia. Com os pais e ou­tros ca­ma­radas aprendeu, por exemplo, a apre­ciar os clás­sicos e a gostar de mú­sica eru­dita A sua for­mação cul­tural faria, de resto, in­veja a muitos cur­sados. Aos onze anos, por exemplo, co­meçou a ler «Os Maias», lei­tura que os pais con­si­de­ravam ou­sada de mais para a sua idade mas a que fe­charam os olhos.
Entre os vá­rios clás­sicos que leu, Eça de Queiroz foi talvez o que mais a marcou, da sua lei­tura vindo a be­ne­fi­ciar, mais tarde, no curso de co­mu­ni­cação so­cial que ter­minou no ano pas­sado.
O seu per­curso aca­dé­mico é quase iné­dito. A an­tiga 4.ª classe, hoje 1.º ciclo, fê-la aos 44 anos. Poucos anos de­pois, pro­pondo-se con­cre­tizar um sonho de sempre – es­tudar -, de­cidiu fazer o 12.ºano e pro­curar en­trar na fa­cul­dade. Então, um ca­ma­rada, pro­fessor uni­ver­si­tário, que es­tava a par dos seus co­nhe­ci­mentos, su­geriu-lhe que fi­zesse o exame ad hoc, con­selho que acabou por acatar. Es­tudou uns meses so­zinha, con­sul­tando pro­gramas, li­vros e bi­bli­o­tecas e, ven­cida a etapa do ad hoc - com uma boa nota, diga-se -, en­trou fi­nal­mente na fa­cul­dade, no curso de co­mu­ni­cação so­cial, para o qual hoje des­cobre ter tido sempre vo­cação. Uma vo­cação que, afinal, a acom­pa­nhou desde tenra idade, quando aju­dava o seu pai na ti­po­grafia. Ainda hoje o co­ração lhe pal­pita quando vê o prelo então usado na im­prensa clan­des­tina.
A es­crita de Eça de Queiroz e o «Dis­curso do Mé­todo» de Des­cartes aju­daram-na a ar­rumar ideias e a es­tru­turar-se para o curso que ia ini­ciar e que con­cluiu com re­la­tiva fa­ci­li­dade. Só a ma­te­má­tica lhe causou al­guns pro­blemas mas, com es­forço e ajuda, ul­tra­passou-os e hoje «até gosta de ma­te­má­tica».
Acabar o curso foi a sua se­gunda grande ale­gria. A ver­dade porém, faz en­tre­tanto questão de su­bli­nhar, é que «só con­segui acabá-lo graças ao enorme apoio do meu com­pa­nheiro e ao in­cen­tivo dos meus fi­lhos. Sem eles não sei se teria con­se­guido».
Hoje a viver na Co­vilhã, pro­cura aplicar o curso que tirou, ta­refa que não apa­rece fácil, pois a oferta de em­prego nesta área é muita pe­quena e até agora os tra­ba­lhos que lhe surgem não são pagos, o que im­pede-a de fazer o es­tágio a que é obri­gada. Mas a vida foi grande pro­fes­sora e Ma­riana sabe es­perar...
Vida sim­ples, esta de Ma­riana? Assim con­tada, até pa­rece não ter sido es­pe­ci­al­mente di­fícil, mas foi-o se­gu­ra­mente. Só que Ma­riana não gosta de dizê-lo e, como inú­meros ca­ma­radas que como ela so­freram aban­donos, pri­va­ções, perdas, cár­cere, em de­fesa dos seus ideais de jus­tiça e li­ber­dade, fala dela como se não ti­vesse tido mé­rito par­ti­cular ou conta mesmo epi­só­dios ro­cam­bo­lescos que hoje fazem rir mas que então não ti­veram cer­ta­mente qual­quer graça.
Mas foi com mu­lheres e ho­mens desta têm­pera que o 25 de Abril foi pos­sível e há-de ser de­fen­dido, pois, hoje como ontem, con­ti­nuam dis­postos e en­frentar os de­sa­fios que o fu­turo lhes vier a co­locar.



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