Uma portuguesa no mundo

Do exílio à liberdade

Miguel Inácio
En­fren­tando a opressão do re­gime fas­cista, He­lena Rato, co­mu­nista e filha de pais co­mu­nistas, cedo se viu con­fron­tada com a ne­ces­si­dade de fugir para o es­tran­geiro. Com apenas a roupa no corpo, a então exi­lada, passou as «passas do Al­garve» para chegar, por fim, ao país que a aco­lheu, a Bél­gica.
«A pri­meira re­cor­dação que tenho da minha in­fância é de uma imagem de grades. Cu­ri­o­sa­mente não do meu pai, mas de um homem com um pu­lóver ver­melho, sem mangas, e um ca­checol», re­cordou He­lena Rato, eco­no­mista, neste mo­mento na car­reira de in­ves­ti­gação ci­en­tí­fica.
Nas­cida no seio de uma fa­mília de co­mu­nistas, em 1944, He­lena Rato, cedo se viu con­fron­tada com as di­fi­cul­dades de uma so­ci­e­dade re­pres­sora e sa­la­za­rista. «A casa dos meus pais serviu du­rante muito tempo de ponto de apoio ao se­cre­ta­riado do PCP e aos mem­bros do Co­mité Cen­tral. Vivia-se numa si­tu­ação de cerco, em que por exemplo, não me podia en­con­trar com uma das mi­nhas me­lhores amigas, porque os pais dela, assim como os meus, também ti­nham fun­ções dentro do Par­tido», la­mentou a an­tiga exi­lada.
Mas os seus pro­blemas, do­se­ados por al­gumas dú­vidas, não se cin­giam apenas aos nor­mais e ba­nais di­lemas de uma cri­ança, filha de país co­mu­nistas. Havia ainda a questão da re­li­gião. «Em­bora as pes­soas hoje não acre­ditem, na­quela al­tura uma pessoa que não fosse ca­tó­lica, apos­tó­lica e ro­mana, à par­tida era uma pessoa sus­peita. Ou então ateia, pior a emenda que o so­neto. O facto é que este pro­blema se pôs, e assim que eu fui para a es­cola, logo na pri­meira aula, a pro­fes­sora per­guntou quem é que não era bap­ti­zado». Le­van­taram-se duas pes­soas, re­cordou He­lena Rato, «quando ela me per­guntou porque é que eu não o era, res­pondi-lhe, se­gundo as ori­en­ta­ções dos meus pais, que era pro­tes­tante e que só podia ser bap­ti­zada a partir dos 18 anos».

As greves de 62

Anos mais tarde, He­lena Rato en­trou para o Ins­ti­tuto Su­pe­rior Téc­nico e de­pressa se ligou à or­ga­ni­zação aca­dé­mica. «Em 1961, ano de elei­ções para a As­sem­bleia Na­ci­onal, co­mecei a na­morar com um moço de Di­reito, muito ac­tivo dentro do Par­tido. De­pois, e como ele fazia a ponte entre a opo­sição de­mo­crá­tica com ou­tros sec­tores, quando ter­mi­naram as elei­ções, ele foi preso. Como eu es­tava na RIA (Reu­nião Inter-As­so­ci­a­ções) co­me­çámos então a fazer al­guma pressão, junto das as­so­ci­a­ções de es­tu­dantes, para de­nun­ciar as tor­turas feitas nos ca­la­bouços da PIDE».
Numa al­tura de grande an­si­e­dade e von­tade de fazer qual­quer coisa, surge-lhe então José Ber­nar­dino, «um in­di­víduo muito de­ter­mi­nante, mas também muito tei­moso. Era uma fi­gura bas­tante co­nhe­cida no mundo uni­ver­si­tário, e a de­ter­mi­nada al­tura co­meçou-nos a di­fundir a ideia de uma greve uni­ver­si­tária».
Pas­sado um ano, com o mo­vi­mento uni­ver­si­tário a crescer, sus­ten­tado pela or­ga­ni­zação do PCP, dão-se as greves de 1962. «Os es­tu­dantes con­cen­traram-se na Ci­dade Uni­ver­si­tária. Cer­cados pela po­lícia, sen­támo-nos no chão, a cantar o hino na­ci­onal, de­grau após de­grau, lá aguen­támos, com muitas ca­beças par­tidas, a bru­ta­li­dade da po­lícia», re­cordou, mesmo assim, com traço de ale­gria nos olhos.
Pas­sados al­guns dias, He­lena Rato re­cebe um te­le­fo­nema a avisar que havia sido de­nun­ciada. «Com 19 anos, e 20 es­cudos na car­teira, não sabia o que fazer. Foi então que me lem­brei que a minha mãe, por volta da­quela hora, cos­tu­mava ir ao mer­cado da Praça do Chile, em Lisboa, fazer com­pras. Quando lhe contei, deu-me mais di­nheiro e con­se­guiu ar­ranjar um lugar para eu ficar».

Sair de Por­tugal

Algum tempo de­pois, grá­vida de oito meses, a si­tu­ação do jovem casal es­tava cada vez mais com­pli­cada e, porque não ti­nham con­di­ções para ir para a clan­des­ti­ni­dade, de­ci­diram casar e sair do País.
«Re­to­mámos uma saída, no Al­garve, que es­tava fe­chada à muito tempo. Che­gámos a uma al­deia, onde havia uma festa, e de re­pente, saltou um velho, de ca­jado na mão, à nossa frente. O homem quando me viu, com aquela bar­riga, en­trou em pâ­nico e disse que não podia fazer a tra­vessia. No en­tanto, nós lá o con­ven­cemos e se­guimos vi­ajem».
Per­cor­rendo vá­rios qui­ló­me­tros de carro, «por um ca­minho de ca­bras», e vá­rios ou­tros a pé, fe­ridos, can­sados e com­ple­ta­mente exaustos, lá che­garam a Es­panha onde havia al­guém à es­pera, que os levou para uma es­tação de com­boio.
«Sem qual­quer muda de roupa, to­mámos um com­boio que parou em todas as es­ta­ções até Ma­drid. Uma vez lá, ti­vemos al­guma sorte, porque no ae­ro­porto, onde íamos apa­nhar o avião para Paris, a po­lícia es­pa­nhola, que des­con­fiou de nós, no en­tanto, ao ver o meu es­tado, ca­rimbou de ime­diato o pas­sa­porte».
No seu pri­meiro dia, um pouco per­didos na ca­pital fran­cesa, a sorte voltou a bater à porta do casal. «Es­tá­vamos sen­tados numa da­quelas es­pla­nadas fran­cesas, no dia 14 de Julho, num am­bi­ente de grande eu­foria, quando olhei para um grupo de pes­soas e vi o Edu­ardo Serra, um amigo de Por­tugal, que nos levou para a casa dele e nos guiou até ao nosso con­tacto», contou a exi­lada.
«O pior foi onde ficar», re­latou He­lena Rato, porque os por­tu­gueses, a viver em Paris, não ti­nham con­di­ções para alojar nin­guém. «Também não po­díamos ficar nos ho­téis, porque havia uma lei de pro­tecção à in­fância, e como eu es­tava quase a ter a cri­ança, não nos acei­taram».

Da Ar­gélia até à Bél­gica

Como não ti­nham do­cu­mentos, nem tra­balho, a sua si­tu­ação con­ti­nuava a ser bas­tante pro­ble­má­tica. He­lena Rato e o seu com­pa­nheiro de­ci­diram então vi­ajar para a Ar­gélia.
Num país com men­ta­li­dades e ca­rac­te­rís­ticas di­fe­rentes das da Eu­ropa, o casal, com o se­gundo filho já nas­cido, uma me­nina, de­ci­diram ir então para a Bél­gica. «En­fren­támos então um novo pro­blema, que era não termos o es­ta­tuto de re­fu­giado, e as en­tradas para a Eu­ropa serem feitas pela França. En­tre­tanto, através dos nossos con­tactos, ar­ran­jaram-me um pas­sa­porte do MPLA, que tinha o nome de Paulo Jorge, foi por isso fácil de fal­si­ficar, bas­tava por uma per­ninha no "a" e fi­cava Paula. O pro­blema foi fazer um selo para averbar a ida dos meus fi­lhos co­migo».
«Como era as­neira ir di­rec­ta­mente para a Bél­gica», He­lena Rato, e os seus dois fi­lhos, foi pri­meiro para Ams­terdão para de­pois apa­nhar um com­boio com o des­tino final - Bél­gica. Como não havia, na­quela al­tura, em­prego para as mu­lheres, a exi­lada de­cidiu re­co­meçar a es­tudar eco­nomia. Sendo uma aluna exem­plar, tirou o curso de eco­nomia e mais tarde, um mes­trado em eco­no­me­tria.
He­lena Rato, mu­lher de­ci­dida e mi­li­tante, contou ainda ao Avante! o mo­mento em que soube da Re­vo­lução dos Cravos. «Es­tava em casa quando o meu se­gundo com­pa­nheiro, um francês, ouviu na rádio que havia ocor­rido uma re­vo­lução po­lí­tica em Por­tugal. O que eu acho es­pan­toso foi a per­cepção da con­quista da dig­ni­dade de ser por­tu­guês, onde as pes­soas, no es­tran­geiro, pas­saram-nos a olhar de uma ma­neira di­fe­rente».



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