Nas prisões do fascismo

As portas abriram-se do lado de fora

Gustavo Carneiro
Para muitos presos po­lí­ticos, a li­ber­dade chegou um dia mais tarde. En­quanto os ca­pi­tães e o povo li­vravam Por­tugal de quase cinco dé­cadas de fas­cismo, o úl­timo fun­ci­o­nário do PCP preso en­fren­tava, em Ca­xias, os tor­ci­o­ná­rios da PIDE, num con­fronto que um e ou­tros não ima­gi­navam tão breve.
Quando foi preso, a 21 de Abril de 1974, José Carlos Al­meida es­tava longe de ima­ginar que não pas­saria mais de cinco dias nos ca­la­bouços do fas­cismo. Em doze anos de ac­ti­vi­dade re­vo­lu­ci­o­nária clan­des­tina, como fun­ci­o­nário do PCP, tinha-se pre­pa­rado para a even­tu­a­li­dade de vir a ser cap­tu­rado. Leu re­la­tó­rios e ouviu ex­pe­ri­ên­cias que di­versos ca­ma­radas iam con­tando. Ex­pe­ri­ên­cias que foram com­pi­ladas e edi­tadas pelo Par­tido, no mí­tico Se fores preso, ca­ma­rada, que os mi­li­tantes clan­des­tinos es­tu­davam mi­nu­ci­o­sa­mente.
A aná­lise destes do­cu­mentos e ex­pe­ri­ên­cias não evitou a sur­presa e o susto, quando foi cer­cado por dez agentes da PIDE, na manhã de 21 de Abril, no Porto. Mas a per­ple­xi­dade não lhe toldou o ra­ci­o­cínio. Apro­vei­tando a pas­sagem de um au­to­carro, tratou de levar à prá­tica aquilo que era uma das ex­pe­ri­ên­cias es­tu­dadas: fazer ba­rulho para de­nun­ciar a si­tu­ação, es­cla­recer as pes­soas que as­sis­tissem e fazer chegar ao Par­tido a in­for­mação de que tinha ha­vido uma prisão. «Co­mecei a gritar e eles co­me­çaram à co­ro­nhada: fi­quei com um lenho na ca­beça du­rante muito tempo. De­pois al­ge­maram-me e le­varam-me para a sede da PIDE no Porto», re­corda José Carlos Al­meida. Che­gado ao re­duto dos es­birros, re­cusou iden­ti­ficar-se ou prestar quais­quer de­cla­ra­ções. Mais tarde, foi me­tido num carro, rumo a Lisboa, es­col­tado por ou­tras duas vi­a­turas. Des­tino: o forte de Ca­xias.
«Eu so­fria de ciá­tica e tinha uma hérnia. Vir al­ge­mado com as mãos atrás das costas do Porto para Lisboa foi muito do­lo­roso», lembra José Carlos Al­meida. Che­gado ao cár­cere, re­cusou no­va­mente iden­ti­ficar-se, desta vez aos ser­viços pri­si­o­nais. De­pois de re­vis­tado, foi en­car­ce­rado numa cela, iso­lado. Na manhã se­guinte, deu en­trada na sala das tor­turas da ala sul do forte. O in­ter­ro­ga­tório ia co­meçar. A re­ceita era a de sempre: vi­o­lência, hu­mi­lhação, tor­tura. Tudo com um único ob­jec­tivo, vergar a de­ter­mi­nação e von­tade dos re­sis­tentes. Tal como em muitos ou­tros casos, a PIDE fa­lhou.
A «sim­patia» de um agente, logo se­guida da in­ves­tida de um outro, ofen­sivo e brutal, es­tava tudo pre­visto na mente do co­mu­nista preso. Assim como a ati­tude pe­rante a tor­tura da es­tátua. «Quero uma ca­deira ou sento-me no chão», exigiu. A ca­deira veio. «É evi­dente que isto não seria sempre assim», afirma. «Eles es­pan­cavam as pes­soas, mas como eu tinha che­gado há pouco tempo, es­tavam ainda a es­tudar a minha per­so­na­li­dade», re­corda José Carlos Al­meida.


A li­ber­dade com um dia de atraso

Quando tudo fazia es­perar o início da ex­plosão de fúria dos es­birros da PIDE sobre o pri­si­o­neiro, que tei­mava em não se iden­ti­ficar e em não prestar quais­quer de­cla­ra­ções, José Carlos Al­meida é al­ge­mado e me­tido numa car­rinha. «Ainda pensei que fosse para o hos­pital, já que eu tinha pas­sado todo o tempo a pro­testar sobre o meu es­tado de saúde», re­corda. O des­tino não era o hos­pital, mas outro bem di­fe­rente, uma cela no re­duto norte da prisão.

Na manhã do dia 26, ouvem-se gritos nos cor­re­dores, im­per­cep­tí­veis para José Carlos Al­meida. «Pensei que es­tavam a es­pancar gente», lembra. De re­pente, al­guém abre a sua cela. Atrás do agente da GNR, surgem mi­li­tares. Na sala de tor­tura há quatro dias, não tinha co­nhe­ci­mento de que o go­verno fas­cista tinha sido de­posto e que a li­ber­dade nascia já em Por­tugal. Quando o mi­litar lhe pede iden­ti­fi­cação, re­cusa-se mais uma vez. Não fa­laria.
Só mo­mentos mais tarde, com as ex­pli­ca­ções dos mi­li­tares e após en­con­trar ve­lhos co­nhe­cidos da re­sis­tência an­ti­fas­cista nos cor­re­dores da prisão, se aper­cebe que algo mu­dara. De­fi­ni­ti­va­mente. Ali­ando todos os acon­te­ci­mentos de que era tes­te­munha à re­cor­dação de uma in­for­mação re­ce­bida tempos antes numa reu­nião do Par­tido, sobre mo­vi­men­ta­ções mi­li­tares em curso, se deu conta do golpe vi­to­rioso. Fi­nal­mente, iden­ti­ficou-se.
Nas ruas já se can­tava a li­ber­dade, mas em Ca­xias os presos con­ti­nu­avam nas celas. «Nós exi­gíamos sair, pois era inad­mis­sível ter ha­vido um golpe e nós não po­dermos ter li­ber­dade», afirma. Mas os mesmos que apro­vei­ta­riam o poder dado pelos mi­li­tares do povo para im­pedir a con­cre­ti­zação do sonho ten­tavam matar a li­ber­dade à nas­cença. Nem todos os presos se­riam li­ber­tados, afir­mavam. «Eu fazia parte destes», re­fere o co­mu­nista.
José Carlos Al­meida re­corda per­fei­ta­mente os mo­mentos da li­ber­tação: «co­me­çámos a dizer que sai­riam todos ou não sairia ne­nhum.» Os presos uniram-se e con­se­guiram vir para o pátio. «A malta agar­rava-se e cho­rava de emoção. Eu pen­sava que ia passar ali anos», lembra. Antes de aban­do­narem de­fi­ni­ti­va­mente o cár­cere, os ex-presos ainda te­riam o prazer de ver en­trar os agentes da PIDE, que ocu­pa­riam as celas onde antes ha­viam es­tado os re­sis­tentes. Os tor­ci­o­ná­rios, en­vi­ados fi­nal­mente para o sítio que lhes era de­vido, não fi­ca­riam muito tempo. A li­ber­dade não ajus­taria contas com os seus car­rascos.
De­pois de livre, José Carlos Al­meida quis re­aver os seus per­tences, rou­bados à en­trada para a tor­tura. Pro­cu­rava so­bre­tudo um is­queiro, ofe­re­cido por ca­ma­radas do Porto, de onde se pre­pa­rava para partir. Não o en­con­trou. Do que lhe foi sub­traído, apenas re­cu­perou os ata­ca­dores dos sa­patos, dentro de um en­ve­lope. Com a ins­crição «preso sem nome».

Anos na es­cu­ridão

Após 12 anos de dura luta clan­des­tina, José Carlos Al­meida re­cu­perou o nome que havia per­dido em fi­nais do ano de 1962, quando se tornou fun­ci­o­nário do PCP. Se du­rante cinco dias foi o «preso sem nome», por mais de uma dé­cada somou iden­ti­dades. A úl­tima, à data da sua prisão, era Fer­nando Du­arte Bastos. As fi­lhas co­nhe­ciam-no apenas por «pai».
Desses tempos já dis­tantes, em que Abril se cons­truía, re­corda so­bre­tudo as lutas e a ca­ma­ra­dagem. «Vá­rios ca­ma­radas deram muito ao Par­tido e nunca foram co­nhe­cidos», des­taca. Mas não es­quece também os mo­mentos do­lo­rosos, quando a po­lícia des­truía o tra­balho de meses ou anos, ou quando algum ca­ma­rada fra­que­java na tor­tura.
Das suas re­fe­rên­cias, des­taca as tra­di­ções fa­mi­li­ares, de es­querda do lado pa­terno. As lei­turas também jo­garam o seu papel. Li­vros como Os Thi­bault, de Roger Martin du Gard, Jean Cris­tophe, de Ro­main Ro­land, ou A Mãe, de Má­ximo Gorki, mar­caram in­de­le­vel­mente o per­curso e as op­ções de José Carlos Al­meida, bem como de muitas ge­ra­ções de re­sis­tentes. O tra­balho no banco, o es­tudo noc­turno e a pre­sença as­sídua na Co­o­pe­ra­tiva dos Tra­ba­lha­dores de Por­tugal pro­por­ci­onam-lhe o con­tacto com o Par­tido e o seu órgão cen­tral, o Avante!, que passou a re­ceber na es­cola. A adesão con­sumou-se anos de­pois, em 1957. Pas­sados tantos anos de ac­ti­vi­dade re­vo­lu­ci­o­nária, que se con­funde com a sua vida, não tem dú­vidas: «valeu a pena!»



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