Comentário

Da seriedade e da «solidariedade»

João Ferreira

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O golpe de te­atro con­sumou-se. De­pois de re­pe­tidas juras de que re­jei­taria a pro­posta de or­ça­mento da UE para o pe­ríodo 2014-2020, de­pois de rios de tinta sobre a mais que pro­vável «crise ins­ti­tu­ci­onal» que daí re­sul­taria, eis que o Par­la­mento Eu­ropeu, como se adi­vi­nhava, dá sos­se­ga­da­mente o seu acordo à pro­posta de Quadro Fi­nan­ceiro Plu­ri­a­nual de­ci­dida pelo Con­selho Eu­ropeu, onde os go­vernos das grandes po­tên­cias, mais uma vez, im­pu­seram os seus in­te­resses – uma di­mi­nuição his­tó­rica do or­ça­mento.

Martin Schulz, «so­ci­a­lista» alemão, pre­si­dente do Par­la­mento Eu­ropeu e um dos mais aguer­ridos arautos da «Eu­ropa so­cial», re­petiu du­rante meses que o Par­la­mento não acei­taria ne­nhuma pro­posta que re­du­zisse o or­ça­mento da UE, ne­nhuma pro­posta que não fosse con­sen­tânea com as am­bi­ções da «Eu­ropa so­cial». Mais re­cen­te­mente, afinou o dis­curso: afinal, só a acei­taria me­di­ante duras con­tra­par­tidas. Há poucos dias, em nome do Par­la­mento Eu­ropeu, e antes mesmo de ter ha­vido qual­quer dis­cussão e de­li­be­ração na ins­ti­tuição a que pre­side, deu o seu acordo à mes­mís­sima pro­posta de or­ça­mento re­du­zido que antes cri­ti­cara, re­cu­ando também nas con­tra­par­tidas exi­gidas.

O ha­bi­li­doso po­lí­tico alemão, as­su­mido can­di­dato da so­cial-de­mo­cracia eu­ro­peia à pre­si­dência da Co­missão Eu­ro­peia, es­teve há poucas se­manas em Por­tugal. De­cla­ra­da­mente em cam­panha, Schulz fez questão de adornar a agenda da vi­sita com um con­junto de eventos de­mons­tra­tivos da sua vin­cada «cons­ci­ência so­cial». Num deles, al­moçou com vá­rios sem-abrigo, na sede de uma as­so­ci­ação que lhes presta apoio, e ver­berou esta «Eu­ropa que dá de­ma­siada atenção aos bancos e pouca atenção aos mais po­bres».

Este é o mesmo se­nhor que aprovou um or­ça­mento que prevê o fim de um pro­grama de ajuda ali­mentar com uma do­tação de 3,5 mil mi­lhões (entre 2007 e 2013) para o subs­ti­tuir por um pro­grama de âm­bito mais lato e com uma do­tação in­fe­rior, em pelo menos mil mi­lhões de euros.

São as duas caras da so­cial-de­mo­cracia. Na Eu­ropa, como em Por­tugal.

Por cá, An­tónio José Se­guro afirmou que o Tra­tado Or­ça­mental, que votou fa­vo­ra­vel­mente na As­sem­bleia da Re­pú­blica, teria como con­tra­par­tida certa e se­gura (Hol­lande, na al­tura, assim o pro­metia) o re­forço do or­ça­mento da UE. Num mo­mento em que o PS se pro­cura des­colar do Go­verno com quem co-subs­creve o pro­grama da troika, é bom lem­brar que este Tra­tado – para o qual Ca­vaco, já por di­versas vezes, chamou a atenção, di­zendo que à conta dele, no fu­turo, mesmo que mudem os go­vernos, não mu­dará a po­lí­tica – este Tra­tado, dizia-se, prevê sim­ples­mente isto: no pós-troika con­ti­nu­arão em vigor as po­lí­ticas da troika, ou seja, aus­te­ri­dade eterna. É bom lem­brar que PS, PSD e CDS apro­varam este Tra­tado e a sua trans­po­sição para a ordem ju­rí­dica na­ci­onal, no­me­a­da­mente na Lei de En­qua­dra­mento Or­ça­mental, onde se es­ta­be­lece que o pa­ga­mento da dí­vida aos cre­dores tem pri­o­ri­dade sobre quais­quer ou­tras des­pesas, até mesmo sobre as re­la­ci­o­nadas com o «Es­tado so­cial», de que Se­guro tanto fala.

Aquando da apro­vação do Tra­tado, Se­guro (como os seus pares eu­ro­peus) jus­ti­ficou-se: este é o «re­forço da dis­ci­plina ne­ces­sário» para que pos­samos be­ne­fi­ciar também de um «re­forço da so­li­da­ri­e­dade» da UE, ex­presso no re­forço subs­tan­cial do or­ça­mento eu­ropeu.

Ora, aí temos agora esse «re­forço»: só Por­tugal perde dez por cento de fi­nan­ci­a­mento da UE (cerca de três mil mi­lhões de euros) em com­pa­ração com o Quadro Fi­nan­ceiro Plu­ri­a­nual ac­tu­al­mente em vigor (2007-2013). Du­rante os pró­ximos sete anos, as trans­fe­rên­cias da UE para Por­tugal ci­frar-se-ão, no má­ximo, em 27,8 mil mi­lhões de euros. Mas é quase certo que an­darão bem abaixo deste valor, tendo em conta as aper­tadas re­gras que passam a existir para a uti­li­zação das verbas da UE (in­cluindo a cha­mada «con­di­ci­o­na­li­dade ma­cro­e­co­nó­mica»). Para termos uma noção de es­cala, re­fira-se que, de acordo com in­for­ma­ções do pró­prio Go­verno por­tu­guês, só em juros e co­mis­sões o País pa­gará à troika cerca de 34,6 mil mi­lhões de euros. Uma parte im­por­tante desta verba terá como des­tino os co­fres da pró­pria UE.

Eis, pois, o sig­ni­fi­cado da tão pro­pa­lada «so­li­da­ri­e­dade eu­ro­peia», que Se­guro andou a vender aos por­tu­gueses. En­tre­tanto, nem uma pa­lavra se lhe ouviu até agora sobre este acordo. Mas os de­pu­tados do PS no Par­la­mento Eu­ropeu já vo­taram fa­vo­ra­vel­mente uma re­so­lução a con­gra­tular-se com o acordo po­lí­tico que fixa o or­ça­mento da UE para o pe­ríodo 2014-2020. O mesmo acordo que, em Fe­ve­reiro, Se­guro cri­ticou a Passos Co­elho ter aceite no Con­selho Eu­ropeu...



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