Justiça para Trayvon
Este é George Zimmerman. O seu cadastro criminal que diga o que disser, George autodenomina-se um vigilante, um voluntário, um herói americano. George não é de ficar em casa à espera que a polícia cumpra a lei: ele e o seu revólver são a lei. Em noites chuvosas como aquela, percorria as ruas de Sanford no estado da Florida à procura de «cabrões» e «bandidos filhos da puta». É mesmo o que acabaram de ler, foi o próprio George que assim o disse quando ligou à polícia.
George bem tentou explicar aos agentes que estava a seguir um miúdo, «um cabrão, desses que nunca são apanhados», um «bandido filho da puta». Só podia ser. Afinal, o que é que faz um adolescente negro de capuz na cabeça (!) a estas horas da noite?
Mas se a polícia não ia fazer nada, o próprio George encarregar-se-ia de limpar as suas ruas destes «cabrões» e dos seus suspeitos capuzes. Mas, impertinência das impertinências, quando o segurança voluntário lhe pediu contas, Trayvon Martin, de 17 anos, não lhe reconheceu nenhuma autoridade e confrontou-o. Zimmerman não hesitou, desembainhou um revólver e matou o adolescente de um só tiro.
Trayvon tinha ido comprar guloseimas a uma «loja de conveniência» e estava a regressar a casa quando foi morto. Até aqui nada de novo, nos EUA um jovem negro é alvejado a cada 28 horas por polícias ou vigilantes voluntários. Mas Zimmerman admitiu tudo: ter seguido o jovem, tê-lo confrontado sem provocação e tê-lo morto de um só tiro ao sentir-se «ameaçado».
Racismo daltónico
Só dois meses após o assassinato e depois de fortes protestos é que Zimmerman foi acusado pela justiça estado-unidense, a mesma que agora o absolveu de todas as acusações. Numa declaração patética, os representantes dessa justiça apressaram-se a anunciar que o caso não tinha nada a ver com «raças». Embora a insistência dos EUA em continuar a classificar a sua população com critérios «raciais» cientificamente desacreditados seja já de si testemunho de um entranhado preconceito, a decisão do tribunal configura um novo e perigoso tipo de racismo, a que muitos já apelidam de «racismo daltónico».
O novo passatempo da direita americana é fingir que nada tem a ver com racismo. Incapazes de olhar a história nos olhos, a reacção nervosa de muitos conservadores é negar-se a discutir sequer o racismo. Na esteira deste pressuposto, o Supremo Tribunal veio recentemente declarar que o racismo e a discriminação racial são «coisas do passado», legitimando a supressão de uma bateria de leis federais conhecida por «lei dos direitos ao voto» que impedia os estados de limitar os direitos políticos das minorias.
Como um dia Fukuyama declarou o «fim da história»: o capitalismo como fim do progresso humano, agora o Supremo veio declarar o «fim do racismo». Se o primeiro mito não durou muito, o segundo nasceu morto. Esta é uma terra sulcada por feridas que não saram por decreto e o racismo é porventura a mais profunda. Não, não foi o racismo que morreu. Esse está bem vivo e, como Trayvon mostrou ao mundo, continua a matar.
Porque ardem as ruas
Neste país, as mães negras esperam que os bebés não cresçam demasiado: quanto maiores mais propensos serão a serem assassinados pela polícia. Neste país, os pais negros ensinam os filhos a colocar as mãos fora da janela do carro quando um polícia se aproxima: com ambas as mãos à vista, é menos provável serem alvejados. Neste país virtualmente todos os jovens negros já sentiram, alguma vez na vida, medo de ser brutalizados ou mortos pela polícia. Neste país, a inteligência, a confiança e a originalidade dos negros são julgadas como arrogância, impertinência e insolência.
Agora, a comunicação social refugia-se nas especificidades secretas do caso, nas questões técnicas a que o público não teve acesso. Dizem que o crime de Zimmerman não pode ser considerado um crime de ódio racial porque o próprio Zimmerman tem ascendência latina: o mesmo que dizer que Hitler não era racista porque tinha uma avó judia. Procuram, sumariamente, fazer do direito um domínio técnico inacessível e imune à sociedade, à História e à luta de classes.
Mas se a justiça dos tribunais absolveu Zimmerman as ruas condenam-no. De Nova Iorque a Oakland, dezenas de milhares saem às ruas contra a decisão do tribunal e contra o racismo encapotado. Ao justificar e absolver o assassinato de Trayvon, a justiça do capital condenou este adolescente a uma segunda morte. A justiça dos trabalhadores ainda falará um dia.