Uma revolução profunda a caminho do socialismo

Concretização da Revolução Democrática e Nacional

Em poucos meses, os ope­rá­rios agrí­colas ocu­param e tra­ba­lharam mais de um mi­lhão de hec­tares an­te­ri­or­mente nas mãos dos agrá­rios

O PCP es­teve ao lado dos tra­ba­lha­dores e do povo du­rante o pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário, como es­ti­vera antes, nos duros anos da re­sis­tência an­ti­fas­cista

 

Vasco Gon­çalves, o «com­panheiro Vasco», fi­cará na his­tória como um re­vo­lu­ci­o­nário ge­ne­roso e in­tei­ra­mente de­di­cado aos in­te­resses do povo e do País

As na­ci­o­na­li­za­ções cri­aram «um sector bá­sico da eco­nomia por­tu­guesa li­berto dos in­te­resses pri­vados e em con­di­ções de di­na­mizar o de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico na­ci­onal»

O 1.º de Maio de 1975 re­velou a von­tade dos tra­ba­lha­dores de apro­fun­darem a sua re­vo­lução

Uma re­vo­lução é um pro­cesso so­cial com­plexo e par­ti­cu­lar­mente in­tenso, no curso do qual in­tervém uma in­fi­ni­dade de fac­tores e de su­jeitos, por vezes em sen­tidos di­ver­gentes ou mesmo con­tra­di­tó­rios. Daí ser sempre mais rico do que a mais bri­lhante das te­o­ri­za­ções, quer sejam elas pro­du­zidas de an­temão quer as­sumam um ca­rácter re­tros­pec­tivo.

A Re­vo­lução de Abril, evi­den­te­mente, não foge a esta regra. Em 1965, no seu VI Con­gresso, o PCP aprovou o Pro­grama para a Re­vo­lução De­mo­crá­tica e Na­ci­onal, que o pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário con­creto viria a con­firmar nas suas li­nhas e ob­jec­tivos fun­da­men­tais. Mas a Re­vo­lução não es­tava es­crita e, no seu de­sen­vol­vi­mento con­creto, trouxe sur­presas e ori­gi­na­li­dades.

Abril foi uma Re­vo­lução pro­funda que al­terou com­ple­ta­mente as es­tru­turas po­lí­ticas, eco­nó­micas, so­ciais e cul­tu­rais do País, mu­dando por com­pleto a sua fi­si­o­nomia. Trans­for­ma­ções reais que pela sua na­tu­reza e con­teúdo con­creto se podem con­si­derar no ca­minho para o so­ci­a­lismo. Ela não se li­mitou a al­terar a forma de do­mínio po­lí­tico das classes de­ten­toras do poder eco­nó­mico; pelo con­trário, afastou-as do poder po­lí­tico e aboliu no fun­da­mental o seu poder eco­nó­mico. Ela foi factor de eman­ci­pação e de pro­gresso so­cial e na­ci­onal.

Em menos de dois anos, o Por­tugal fas­cista (com o seu rol de ex­plo­ração, vi­o­lência e obs­cu­ran­tismo) deu lugar a um país que apon­tava o ob­jec­tivo de «abrir ca­minho para uma so­ci­e­dade so­ci­a­lista», como se podia – e pode, ainda hoje! – ler no preâm­bulo da sua Cons­ti­tuição.

Mas a Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa, apro­vada e pro­mul­gada a 2 de Abril de 1976, as­sumiu as pro­fundas trans­for­ma­ções reais – di­reitos, con­quistas e va­lores – cor­res­pon­dentes aos ob­jec­tivos da Re­vo­lução De­mo­crá­tica e Na­ci­onal e in­te­grantes do ca­minho para o so­ci­a­lismo: o di­reito ao tra­balho e a um sa­lário digno; o di­reito à saúde e à edu­cação pú­blicas e de qua­li­dade e à pro­tecção so­cial no de­sem­prego ou ve­lhice. Mas, igual­mente, o ca­rácter ir­re­vo­gável da Re­forma Agrária, das na­ci­o­na­li­za­ções e do con­trolo ope­rário; o Poder Local De­mo­crá­tico; a sub­missão do poder eco­nó­mico ao poder po­lí­tico de­mo­crá­tico; a con­tri­buição de Por­tugal para a Paz, o de­sar­ma­mento, o res­peito pela in­de­pen­dência e so­be­rania dos povos.

Con­quistas da luta po­pular

Se o ca­rácter das trans­for­ma­ções de­mo­crá­ticas e re­vo­lu­ci­o­ná­rias de Abril im­pres­siona pela sua pro­fun­di­dade, a forma como elas foram al­can­çadas é sim­ples­mente no­tável. A este res­peito, es­creveu Álvaro Cu­nhal (no re­la­tório ao VIII Con­gresso do PCP, em 1976): «o factor de­ter­mi­nante das trans­for­ma­ções de­mo­crá­ticas e re­vo­lu­ci­o­ná­rias le­vadas a cabo e das de­ci­sões pro­gres­sistas do poder po­lí­tico foi a luta das massas po­pu­lares. A luta de massas an­te­cedeu sempre as de­ci­sões do poder. A ini­ci­a­tiva partiu sempre de baixo.»

Salvo um curto pe­ríodo após a der­rota do golpe de 11 de Março de 1975 (na vi­gência do IV e do V go­vernos pro­vi­só­rios), o poder po­lí­tico pro­curou con­tra­riar, ou acom­pa­nhou com atraso, as trans­for­ma­ções re­vo­lu­ci­o­ná­rias que as massas po­pu­lares e os mi­li­tares do MFA pro­vo­cavam na vida na­ci­onal. Em todo o pe­ríodo de as­censo re­vo­lu­ci­o­nário, a luta po­pular e os seus re­sul­tados con­cretos «ul­tra­pas­saram sempre a ini­ci­a­tiva dos ór­gãos de poder», con­cluiria, na mesma oca­sião, Álvaro Cu­nhal.

Na ver­dade, as con­quistas de Abril foram al­can­çadas sem que ti­vesse sido criado um apa­relho de Es­tado cor­res­pon­dente às trans­for­ma­ções ve­ri­fi­cadas e, in­clu­si­va­mente, sem que tenha ha­vido um poder re­vo­lu­ci­o­nário. Houve, sim, re­vo­lu­ci­o­ná­rios no poder – Álvaro Cu­nhal (mi­nistro sem pasta entre o I e o IV go­vernos pro­vi­só­rios), Vasco Gon­çalves, o «com­pa­nheiro Vasco» (pri­meiro-mi­nistro nos II, III, IV e V go­vernos pro­vi­só­rios), entre ou­tros – seja a par da­queles que o exer­ceram com he­si­ta­ções seja da­queles que o as­su­miram como cons­pi­ra­dores, re­ac­ci­o­ná­rios e sau­do­sistas do fas­cismo.

A pró­pria apro­vação e pro­mul­gação da Cons­ti­tuição, na data con­creta em que se deu, tes­te­mu­nham a força da Re­vo­lução: a 2 de Abril de 1976 já a cor­re­lação de forças no plano mi­litar se tinha al­te­rado em des­favor da de­mo­cracia e do so­ci­a­lismo e o VI go­verno pro­vi­sório, então em fun­ções, tinha uma clara mai­oria de re­pre­sen­tantes do PS e do PSD. Estes mesmos par­tidos, por mais que te­nham ten­tado im­pedir que a Cons­ti­tuição fosse uma re­a­li­dade, não ti­veram outro re­médio senão aprová-la eles mesmos.

 


Con­quistas do povo

Os anos de­cor­ridos e os efeitos da agressão ide­o­ló­gica ali­mentam a ideia de que as con­quistas de Abril serão, mais ou menos, aquilo que a contra-re­vo­lução ainda não des­truiu. Esta dis­torção serve os ob­jec­tivos da po­lí­tica que re­tira o má­ximo aos tra­ba­lha­dores e ao povo para que fique ga­ran­tido esse má­ximo à ín­fima mi­noria de ex­plo­ra­dores, sejam estes na­ci­o­nais, es­tran­geiros ou apá­tridas como por na­tu­reza é o ca­pital.

As con­quistas da re­vo­lução, al­can­çadas em poucos meses e com uma crise cí­clica do ca­pi­ta­lismo a pesar sobre um Por­tugal de­pen­dente e atra­sado, foram obra das massas tra­ba­lha­doras or­ga­ni­zadas. Estas foram também as que mais ga­nharam e, por isso, têm sido as que mais es­for­ça­da­mente se batem em sua de­fesa. As con­quistas de Abril são con­quistas do povo.

Pri­meiro vem a con­quista da li­ber­dade, que abre alas a todas as ou­tras. Nas trin­cheiras mais avan­çadas da re­vo­lução por­tu­guesa si­tuam-se as na­ci­o­na­li­za­ções, a re­forma agrária e o con­trolo ope­rário.

Pelo meio está uma imen­sidão de mo­di­fi­ca­ções pro­gres­sistas: a proi­bição da tor­tura e de­mais mé­todos re­pres­sivos do fas­cismo e a con­se­quente ga­rantia do di­reito à vida e à in­te­gri­dade moral e fí­sica das pes­soas; a li­ber­dade de ex­pressão, de reu­nião, de as­so­ci­ação; a li­ber­dade sin­dical e o di­reito à greve; a le­ga­li­zação de par­tidos po­lí­ticos e a re­a­li­zação de elei­ções li­vres; a ins­ti­tuição do poder local de­mo­crá­tico; o fim da guerra co­lo­nial e a in­de­pen­dência das co­ló­nias; o di­reito de voto aos 18 anos e o fim de aber­rantes si­tu­a­ções de dis­cri­mi­nação das mu­lheres; a ga­rantia de um sa­lário mí­nimo na­ci­onal e do di­reito dos tra­ba­lha­dores à ne­go­ci­ação e con­tra­tação co­lec­tivas; o re­co­nhe­ci­mento do di­reito a fé­rias re­mu­ne­radas e aos sub­sí­dios de fé­rias e de Natal; a ga­rantia de pro­tecção so­cial uni­versal no de­sem­prego, na do­ença e na re­forma; a as­sumpção pelo Es­tado das obri­ga­ções de ser­viço pú­blico, de­cor­rentes da ga­rantia do di­reito de todos ao em­prego, à saúde, ao en­sino, a ha­bi­tação con­digna, ao trans­porte...

Muitas destas con­quistas são hoje sen­tidas como se sempre ti­vessem exis­tido na vida do País e dos por­tu­gueses – me­lhor, de quase todos os por­tu­gueses. Este «quase» deixa de fora, na­tu­ral­mente, os que sus­ten­tavam o re­gime fas­cista e dele eram be­ne­fi­ciá­rios. Abril não lhes deu nada e atacam como podem as con­quistas do povo para re­cu­pe­rarem as perdas e ob­terem novos ga­nhos. É com esta luta por pano de fundo que os co­mu­nistas e muitos ou­tros de­mo­cratas e pa­tri­otas con­ti­nuam hoje a con­si­derar as con­quistas de Abril não apenas como mo­mentos dos mais ele­vados da his­tória de Por­tugal, mas so­bre­tudo como com­po­nentes in­dis­pen­sá­veis num pro­jecto de fu­turo, de um fu­turo que tem que ser me­lhor para o povo por­tu­guês.

 

Abril mudou o País

«A re­vo­lução de Abril não con­sistiu na mu­dança da forma de do­mínio po­lí­tico das classes de­ten­toras do poder eco­nó­mico no tempo da di­ta­dura. A re­vo­lução de Abril afastou essas classes do poder po­lí­tico e li­quidou o seu poder eco­nó­mico.

A na­ci­o­na­li­zação da banca e dos sec­tores bá­sicos (se­guros, elec­tri­ci­dade, pe­tró­leos, in­dús­tria do ferro e aço, trans­portes, es­ta­leiros, ex­tracção de mi­né­rios, vidro, pro­dutos quí­micos, ce­lu­lose e papel, ta­baco, cer­vejas) não só salvou a de­mo­cracia em vias de ins­tau­ração do es­tran­gu­la­mento eco­nó­mico que os grandes grupos mo­no­po­listas es­tavam pro­vo­cando, como es­ta­be­leceu uma base ob­jec­tiva para o de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico em be­ne­fício do País e do povo, aliás con­cre­ti­zado em re­sul­tados po­si­tivos.

A in­ter­venção do Es­tado em muitas cen­tenas de em­presas a que foi obri­gado pela sa­bo­tagem do pa­tro­nato re­ac­ci­o­nário, o es­ta­be­le­ci­mento em cen­tenas de em­presas de sis­temas de au­to­gestão, con­trolo ope­rário e co­o­pe­ra­tivas re­forçou tal pos­si­bi­li­dade.

A re­forma agrária na zona do la­ti­fúndio, con­du­zida no fun­da­mental pelo pro­le­ta­riado rural alen­te­jano e ri­ba­te­jano, foi outra das grandes con­quistas da re­vo­lução de Abril. Re­a­li­zada de­fron­tando fu­ri­osas cam­pa­nhas, ame­aças, ac­ções mi­li­tares de in­ti­mi­dação, ope­ra­ções ar­madas dos agrá­rios, aten­tados ter­ro­ristas, golpes de mão, actos de sa­bo­tagem, ten­ta­tivas su­ces­sivas de es­tran­gu­la­mento eco­nó­mico e fi­nan­ceiro, a re­forma agrária trans­formou ra­di­cal­mente a agri­cul­tura e a si­tu­ação das po­pu­la­ções na re­gião. Foram cri­adas cerca de 500 Uni­dades Co­lec­tivas de Pro­dução (UCPs)/​Co­o­pe­ra­tivas, numa su­per­fície de mais de um mi­lhão de hec­tares. Foram des­bra­vadas cen­tenas de mi­lhares de hec­tares de terras até então in­cultas. Foi alar­gada a área cul­ti­vada, di­ver­si­fi­cadas as cul­turas, in­tro­du­zidas novas cul­turas, au­men­tada a pro­dução agrí­cola e o efec­tivo pe­cuário, en­ri­que­cidos os par­ques de má­quinas, cons­truídas va­ca­rias e or­de­nhas me­câ­nicas.

As con­di­ções de vida dos tra­ba­lha­dores e das po­pu­la­ções me­lho­raram ra­di­cal­mente.»

Ex­certos de «A re­vo­lução de Abril 20 anos de­pois»,
ar­tigo de Álvaro Cu­nhal,
pu­bli­cado na re­vista «Vér­tice» N.º 59,de Março-Abril de
1994, e em Ou­tubro desse ano in­cluído na 2.ª edição
de «A Re­vo­lução Por­tu­guesa – o Pas­sado e o Fu­turo»


Ci­ca­trizes...

Passou há dias na RTP uma de vá­rias re­por­ta­gens a evocar os 40 anos do 25 de Abril. Era sobre a re­forma agrária e foi con­du­zida em torno das «ci­ca­trizes» dos tra­ba­lha­dores que ocu­param terras e dos agrá­rios que então fi­caram sem elas.

O lado dos tra­ba­lha­dores foi mos­trado por dois ou três in­ter­ve­ni­entes, em ima­gens e pa­la­vras do pre­sente e de 1975. He­róis, como tantos mi­lhares, que se lan­çaram aos campos da fome para neles plan­tarem vida me­lhor e raízes para o fu­turo, fa­laram com o co­ração sobre os dias de hoje e sobre o que então foi feito para todos. Her­mínia ad­mitiu que agora quer es­quecer. E logo es­cla­receu que isto nada tem a ver com re­negar o pas­sado, onde a ví­ramos pouco antes, jovem cei­feira de falas claras. Quer es­quecer porque o pre­sente lhe dói. Queria ver os jo­vens que ainda fi­caram na al­deia, li­gados à terra, com postos de tra­balho, com a sua casa, a sua fa­mília... Acre­dita que isso, que agora eles não têm, seria pos­sível com a re­forma agrária.

Não fa­laram agrá­rios, não acei­taram. Apenas um deu a cara, para contar como ficou sem a her­dade e a mãe e umas amigas ti­veram que co­meçar a vender co­mida para fora, e como tudo acabou por lhe ser de­vol­vido. A re­por­tagem já tinha fa­lado da «lei Bar­reto», das de­so­cu­pa­ções, da GNR a apa­recer todos os dias nas co­o­pe­ra­tivas, ar­mada até aos dentes, para es­cor­raçar os tra­ba­lha­dores.

No fim chegou, for­çada, a ilus­tração da re­por­tagem para a ale­goria das ci­ca­trizes: «na de­vo­lução, como na ocu­pação» houve fe­ridos, mortos e me­mó­rias di­fí­ceis de apagar. Não se disse que só mor­reram tra­ba­lha­dores, a de­fender a terra que se­me­avam. Também não se disse que nas ocu­pa­ções de terras ne­nhum agrário morreu.

Não são iguais as ci­ca­trizes ga­nhas por com­ba­tentes tão dis­tintos numa luta de in­te­resses tão opostos.

 


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