Contrastes

Anabela Fino

A ci­meira Rússia-África, que a 27 de Julho reuniu em São Pe­ters­burgo re­pre­sen­tantes de 49 dos 54 países do con­ti­nente afri­cano, es­teve sob fogo dos media, que a apre­sen­taram como um fra­casso. “Apenas” com­pa­re­ceram 17 chefes de Es­tado, num con­texto de enormes e os­ten­sivas pres­sões dos EUA e UE para o boi­cote do en­contro.

Dias antes, em Roma, a pri­meira-mi­nistra de ex­trema-di­reita, Gi­orgia Me­loni, aco­lheu a ci­meira “Food Sys­tems + 2”; posou para a pos­te­ri­dade ao lado do se­cre­tário-geral das ONU, An­tónio Gu­terres, e de uma meia dúzia de dig­na­tá­rios afri­canos; e de­clarou que a «guerra exa­cerbou uma série de pro­blemas, como a falta de se­gu­rança ali­mentar nas na­ções afri­canas», tema para o G7, a que a Itália pre­si­dirá em 2024. De­pois foi ao beija-mão a Biden na Casa Branca.

A ar­ro­gância face aos países afri­canos ri­va­liza com a hi­po­crisia. Como se o co­lo­ni­a­lismo não ti­vesse re­du­zido a África ao papel de for­ne­cedor de mão-de-obra-ba­rata e ma­té­rias-primas, e de con­su­midor de­pen­dente e en­di­vi­dado. Como se o ne­o­co­lo­ni­a­lismo, com as po­lí­ticas im­postas pelos cre­dores como o Banco Mun­dial e o FMI, nada ti­vesse a ver com o facto de, apesar das imensas ri­quezas do con­ti­nente, um terço da po­pu­lação afri­cana viver abaixo do li­miar da po­breza, cerca de nove vezes mais do que a média mun­dial, e de no final de 2022 a dí­vida ex­terna total da África sub­saha­riana as­cender ao mon­tante re­corde de cerca de 790 mil mi­lhões de dó­lares, o dobro de há dez anos, e re­pre­sentar 60% do PIB do con­ti­nente.

As­sacar à guerra na Ucrânia a res­pon­sa­bi­li­dade pela fome em África di­a­bo­liza a Rússia e es­conde o que até o Banco Mun­dial re­co­nhece: que en­quanto os preços por grosso de pro­dutos agrí­colas e ce­reais caíram 4% e 12%, res­pec­ti­va­mente, num ano, os preços dos ali­mentos ti­veram su­bidas de 10% ou mais em todo o mundo. E en­cobre que as causas da fome estão as­so­ci­adas à cres­cente apro­pri­ação de terras ará­veis em África e nou­tras re­giões, in­cluindo a Ucrânia, pelos grandes grupos que es­pe­culam com ma­té­rias-primas, ce­reais in­cluídos: mais de seis mi­lhões de con­tratos de compra e venda de ma­té­rias-primas são feitos di­a­ri­a­mente na Chi­cago Com­mo­dity Ex­change para fins es­pe­cu­la­tivos.

Acresce à hi­po­crisia o facto de quase todos os ce­reais saídos da Ucrânia terem tido como des­tino países da UE e não os países mais po­bres. Se­gundo a ONU, 38% foram en­vi­ados para a Eu­ropa, apesar de a UE ser um ex­por­tador lí­quido de trigo; 30% foram para a Tur­quia e 24% para a China. Apenas 2% foram para na­ções do Sul global.

Em São Pe­ters­burgo, os países afri­canos mos­traram não querer par­ti­cipar nos jogos de guerra do im­pe­ri­a­lismo e que pri­vi­le­giam a ne­go­ci­ação – essa pa­lavra hoje tor­nada obs­cena na so­ci­e­dade oci­dental. Valha-nos isso.




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