Interrupções

Gustavo Carneiro

Há pouco mais de um ano, face à demissão do governo do PS pelo alegado envolvimento de António Costa em casos judiciais, o PSD apresentou-se como campeão da moralidade na política e fez disso um elemento central da sua campanha eleitoral. Já o PS lamentou a interrupção de um ciclo político que, garantia, tanto estaria a fazer pelo País. Os papéis inverteram-se: agora é o PS que batalha pela transparência, centrando-se nos negócios da empresa de Luís Montenegro, e o PSD que denuncia o derrube (injustificado, considera) do seu Governo, que deixa a meio o que diz ser a «transformação do País».

Se sobre a empresa Spinumviva, a promiscuidade que revela e as mil e uma questões éticas que levanta, já se sabe o essencial, foquemos a atenção na dita «transformação» e no que «fica a meio». E não é pouco: a privatização da TAP, uma das maiores exportadoras nacionais, que assegura milhares de postos de trabalho directos e indirectos e garante ao Estado, em dividendos, impostos e contribuições para a Segurança Social, muitos milhões de euros por ano; o regresso do modelo das Parcerias Público-Privadas na Saúde, envolvendo cinco hospitais e 174 unidades de cuidados de saúde primários, que apenas beneficia os grupos privados, saindo mais caro ao Estado e lesando utentes, profissionais e a própria capacidade de resposta dos serviços; a «revisitação» das leis laborais, prometida pelo Governo logo no arranque da legislatura para acomodar exigências das confederações patronais; as alterações anunciadas para o sistema público de Segurança Social, abrindo a porta aos fundos de pensões; o «descongelamento» das propinas, que poderá arredar ainda mais estudantes do Ensino Superior; o aumento dos gastos militares para servir as imposições dos EUA, da UE e da NATO e os lucros da indústria do armamento, à custa de salários, reformas, apoios sociais e serviços públicos.

Enquanto o pau vai e vem folgam as costas, lá diz o povo, e a interrupção – ainda que momentânea – desta agenda não deixa de ser uma boa notícia. Mas não nos iludamos: nem ela será abandonada, ou não fossem estes objectivos centrais dos que se julgam donos-disto-tudo (e que o são, de facto, dos partidos da política de direita), nem a sua implementação está dependente de um eventual novo governo do PSD/CDS, com ou sem alargamentos à sua direita. É que também o PS assume, no todo ou em parte, o essencial destes objectivos: todos nos lembramos da acesa discussão entre PS e PSD sobre quem tinha sido o pioneiro das PPP na Saúde ou da profunda discordância em torno da TAP, com o PSD a defender a privatização total e o PS «apenas» da maioria do capital.

Interromper definitivamente a política que sustenta estas opções é o desafio que está colocado, nas eleições e para lá delas. Na luta que continua, sem interrupções.



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