Memórias e negociações

Gustavo Carneiro

Fundada em 1922, a Foreign Affairs é uma das mais conhecidas revistas dos EUA. Especializada em política externa e relações internacionais, exerce considerável influência sobre as administrações norte-americanas (ou talvez seja ao contrário, para o efeito tanto faz). Longe, portanto, de ser “pró-russa” ou “anti-ocidental”...

Há pouco mais de um ano, publicou um artigo sobre as negociações entre Rússia e Ucrânia iniciadas em Março de 2022, no qual avalia as razões por detrás do seu falhanço: examina missivas trocadas entre as delegações e detalhes que não eram conhecidos à data, entrevista (sob anonimato) funcionários de governos “ocidentais”, contrapõe declarações recentes a outras, prestadas na altura por negociadores russos e ucranianos. Os dados que revela são interessantes.

Primeiro o contexto: poucas semanas após a entrada das tropas russas na Ucrânia, delegações dos dois países tiveram vários contactos, presenciais ou virtuais (na Bielorrússia, primeiro; na Turquia, depois), e estiveram à beira de chegar a um acordo que, asseguram os autores, «teria posto fim à guerra e concedido à Ucrânia garantias multilaterais de segurança, abrindo caminho à sua neutralidade permanente e, no fim, à sua adesão à União Europeia». Este princípio de acordo, que ficou conhecido por “Comunicado de Istambul”, constituía a base a partir da qual as duas partes trabalhariam no texto de um tratado. Apesar das divergências, uma versão do documento, tornada pública a 15 de Abril desse ano, sugeria que o tratado poderia vir a ser assinado em duas semanas. Subitamente, porém, a Ucrânia retirou-se das conversações no início de Maio, interrompendo-as. A guerra, essa, continuou.

O artigo da Foreign Affairs ajuda a esclarecer o teor das negociações e os contornos da reviravolta ucraniana. Cita uma entrevista do principal negociador ucraniano, Davyd Arakhamia, para quem a principal questão, do lado russo, era a neutralidade: «Eles estavam prontos a pôr fim à guerra se nós (…) adoptássemos a neutralidade e garantíssemos não entrar para a NATO.» O mesmo negociador recorda a visita a Kiev do então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e a sua determinação em que nada fosse assinado. Os autores do artigo reconhecem que o “Ocidente” não estava interessado em se «envolver diplomaticamente com a Rússia», apostando antes no prolongamento do conflito. As declarações do presidente do Comité Nacional de Defesa e Segurança ucraniano, Oleksii Danilov, proferidas logo a 2 de Maio (e também lembradas no artigo), revelam a mudança de posição: «Um tratado com a Rússia é impossível – só a capitulação será aceite.»

Que esta recordação seja útil, quando se iniciaram na Turquia, há dias, novas rondas negociais, três anos (e milhares de mortos) depois.



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