Organização e ruptura

Jorge Messias

Se ali­nharmos na me­mória as prin­ci­pais ten­dên­cias da his­tória que os grandes factos dos úl­timos 100 anos re­ve­laram, che­ga­remos pro­va­vel­mente à con­clusão de que os tempos que hoje vi­vemos fazem parte da mesma es­piral que agrupou acon­te­ci­mentos de­ci­sivos que mu­daram a face do mundo mas, de­pois, fi­caram es­que­cidos, em sus­penso, em­bora sem uma fi­na­li­zação de­fi­ni­tiva. Por isso, muito do que agora nos pa­rece no­vi­dade, já an­te­ri­or­mente deu lugar a ter­rí­veis lutas e in­des­cri­tí­veis so­fri­mentos. A his­tória não se re­pete mas também não se es­gota no es­que­ci­mento. Re­gressa quase sempre.

Há de tudo neste pas­sado re­cente que me­deia entre o final da I Guerra Mun­dial e a as­censão do fas­cismo. A cri­ação de novos focos de tensão que pre­pa­raram a ex­pansão das po­tên­cias im­pe­ri­a­listas, a con­cen­tração das for­tunas nas mãos de po­ten­tados fi­nan­ceiros e o in­cre­mento ful­mi­nante das in­dús­trias de ar­ma­mentos.

Em con­tra­par­tida, a partir dos anos 20 pre­sen­ciou-se um pa­no­rama so­cial novo e des­con­cer­tante: a po­pu­la­ri­zação dos novos meios de co­mu­ni­cação, como foi o caso da TSF, per­mitiu à ex­trema-di­reita, se­cre­ta­mente apoiada pelo poder ca­pi­ta­lista su­pos­ta­mente «de­mo­crá­tico», ex­plorar os ce­ná­rios po­lí­ticos da de­ma­gogia, da pro­pa­ganda e da cul­tura do mito. Os êxitos pro­pa­gan­dís­ticos das forças fas­cistas junto de mi­no­rias in­flu­entes da po­pu­lação (no­me­a­da­mente entre os sol­dados des­mo­bi­li­zados e os de­sem­pre­gados) aca­baram por criar elites que deram im­pulso aos novos exér­citos de agressão e à so­fis­ti­cada for­mação de po­lí­cias se­cretas de in­ves­ti­gação e tor­tura. O na­zismo «antes de o ser já o era», bem vi­sível na fa­mosa «De­mo­cracia de Weimar».

Fi­nal­mente, em­bora dei­xando muito por citar, a pró­pria or­ga­ni­zação ca­pi­ta­lista

co­nheceu vi­ra­gens re­tum­bantes. A nível do cume da pi­râ­mide do poder, sur­giram as Con­fe­de­ra­ções em­pre­sa­riais apoi­adas nos ren­di­mentos as­tro­nó­micos ga­ran­tidos pelo Re­ar­ma­mento e pela es­po­li­ação dos mais po­bres: a Con­fe­de­ração do Aço, a con­fe­de­ração da Po­tassa, a Con­fe­de­ração dos Ar­ma­mentos, a Con­fe­de­ração do Co­mércio, etc. Os lu­cros amon­to­aram-se, deram lugar a apoios se­cretos de ou­tros nú­cleos ca­pi­ta­listas mun­diais e foram o ga­tilho da II Guerra Mun­dial – apo­ca­líp­tica, de­vas­ta­dora, mas «cri­a­dora» de um pu­nhado de fa­bu­losas for­tunas. No pólo oposto, ve­ge­tavam mul­ti­dões cres­centes de de­sem­pre­gados, de ci­da­dãos sem lar, de fa­mintos, de ví­timas do ra­cismo e de ex­cluídos de toda a na­tu­reza – ve­lhos, de­fi­ci­entes, ci­ganos, ca­tó­licos pro­gres­sistas, etc. - par­ti­cu­lar­mente quando neles se pres­su­pu­nham ideais mar­xistas.

Veja-se só como quase tudo isto é ac­tual, ainda que en­co­berto por nova “gra­má­tica” en­tre­tanto in­ven­tada; e como ve­lhos fac­tores le­tais, es­que­cidos e jul­gados de­fi­ni­ti­va­mente mortos, vão res­sur­gindo aos poucos nos ce­ná­rios ac­tuais.

O apoio firme do Va­ti­cano aos ob­jec­tivos ca­pi­ta­listas do III Reich e às am­bi­ções de­li­rantes do «Duce» ita­liano, ra­ra­mente che­gavam às co­lunas dos jor­nais e, muito menos, aos mi­cro­fones da ra­di­o­di­fusão. Mas os factos pas­savam de boca em boca, sempre pro­pa­gados pelo re­sis­tência an­ti­fas­cista, quase toda ela en­qua­drada por co­ra­josos co­mu­nistas. Foi assim que se co­meçou a mur­murar acerca da exis­tência de campos de ex­ter­mínio nazis, das re­la­ções ocultas entre o na­zismo fas­cista e o Va­ti­cano ou quanto à ver­da­deira na­tu­reza de classe de obras como o «So­corro de In­verno» ou a «Sopa dos Po­bres». A ca­ri­dade, apa­ren­te­mente mo­vida pelos ideais cris­tãos, in­te­res­sava aos go­vernos fas­cistas para ate­nu­arem os pro­testos das po­pu­la­ções ex­plo­radas e con­de­nadas à mi­séria. Ca­ri­dade que se ma­ni­festou, por exemplo, na re­colha de roupas quentes para os sol­dados nazis e na con­fecção de sopas aguadas que bi­chas in­fin­dá­veis de ju­deus pro­cu­ravam como única forma de so­bre­vi­vência. Estes laços de de­pen­dência pro­duzem a sub­missão do ex­plo­rado ao ex­plo­rador. Desde o seu apa­re­ci­mento sempre es­ti­veram li­gados a or­dens re­li­gi­osas, so­bre­tudo às Mi­se­ri­cór­dias. Mas não deixa de ser cu­rioso que a Igreja, im­pul­si­o­na­dora ini­cial da «so­ci­e­dade civil» e sua pre­sente tu­tora, re­clame agora para o Es­tado ca­pi­ta­lista e li­beral a pa­ter­ni­dade e con­dução desta forma es­pe­cí­fica de «luta contra a po­breza»: «O papel dos po­deres pú­blicos é es­sen­cial (de­verá ser o motor da es­tra­tégia) mas é in­dis­pen­sável que os nu­me­rosos ac­tores que cons­ti­tuem a so­ci­e­dade civil – as­so­ci­a­ções de ci­da­dãos, sin­di­catos, uni­ver­si­dades, fun­da­ções, ONG's, as­so­ci­a­ções de vá­rios tipos, igrejas – con­tri­buam também para o apa­re­ci­mento de um en­ten­di­mento cor­recto sobre o fe­nó­meno da po­breza e a si­tu­ação dos po­bres e par­ti­cipem na es­tra­tégia a de­li­near.» (C. N. Jus­tiça e Paz, 2008). Para a Igreja, de­clara-se também neste ver­da­deiro con­trato-pa­drão entre o poder po­lí­tico e o poder re­li­gioso, a acção a de­sen­volver nas es­tra­té­gias da luta contra a po­breza devem ser an­ti­mer­can­ti­listas. Mas que dizer, então, das mon­ta­nhas de sub­sí­dios es­ta­tais pagos pelos go­vernos às hi­e­rar­quias ca­tó­licas (só nos EUA, os mon­tantes pú­blicos des­vi­ados para ins­ti­tui­ções re­li­gi­osas sob pre­texto da sua par­ti­ci­pação no «com­bate à po­breza», orçam os 100 mil mi­lhões de dó­lares anuais) ou do «mi­lagre» dos mul­ti­mi­li­o­ná­rios mun­diais serem de sú­bito to­cados pelo es­pí­rito da Ca­ri­dade e “ofe­re­cerem” me­tade das suas for­tunas para a cons­ti­tuição de novas Fun­da­ções ca­pi­ta­listas que façam di­mi­nuir o fosso entre ricos e po­bres… Que ma­no­bras, que ne­gó­cios, que ali­anças a alto nível, que «ma­fias», tudo isto ocul­tará?



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