Quando o crime tem aplausos

Correia da Fonseca

De­certo para be­ne­fício e edu­cação dos te­les­pec­ta­dores que lhe têm acesso, o canal Odis­seia, que aliás tem uma gama va­riada de con­teúdos, está a trans­mitir uma série da­tada de 2008 in­ti­tu­lada «O Poder do Di­nheiro», da res­pon­sa­bi­li­dade de um se­nhor pro­fessor da norte-ame­ri­cana Uni­ver­si­dade de Har­vard cha­mado Niall Fer­gurson. O pro­fessor Fer­gurson é, pelo que ali se vê, amigo e fer­vo­roso ad­mi­rador do Di­nheiro que, de­certo, por ade­quados in­ter­me­diá­rios lhe re­tri­buirá e gra­ti­fi­cará a de­voção. A ami­zade é um lin­dís­simo sen­ti­mento, é claro, mas como tudo na vida há-de ter al­guns li­mites, de­sig­na­da­mente éticos, e apa­ren­te­mente ainda nin­guém in­formou disso o pro­fessor. De onde o epi­sódio trans­mi­tido na pas­sada se­gunda-feira. Nele, Fer­gurson não apenas fal­si­fica a His­tória, prá­tica que de tão cor­ri­queira já se tornou um pe­ca­dilho me­ra­mente ve­nial em que já nin­guém re­para, como se torna cúm­plice e apoi­ante de um dos mai­ores crimes co­me­tidos em todo o mundo no pas­sado sé­culo XX: o golpe fas­cista de Pi­no­chet e o re­gime de terror por ele ins­ta­lado no Chile. Ainda que fa­zendo uma bre­vís­sima re­fe­rência aos chi­lenos as­sas­si­nados pelo golpe (mas ca­rac­te­ri­zando-os todos como co­mu­nistas, como quem diz que eram de uma es­pécie sub-hu­mana na­tu­ral­mente des­ti­nada a ser tor­tu­rada e morta sem que o facto fosse grave), o epi­sódio passou ra­pi­da­mente para uma tal série de lou­vores à prá­tica eco­nó­mico-fi­nan­ceira do go­verno Pi­no­chet que só um co­ração mal-for­mado pode re­cusar-se a re­co­nhecer que a pi­no­che­tada foi um acto de grande bon­dade não apenas para o povo chi­leno mas também, por força do exemplo dado ao mundo, para toda a cha­mada «co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal». E, di­dác­tico e sem com­plexos, ex­plica como foi.


Bran­que­a­mento & Exemplo


Assim, o epi­sódio contou como, quase logo após a ocu­pação do poder as­sal­tado, de­sem­barcou no ae­ro­porto de San­tiago o fa­mi­ge­rado Milton Fri­edman, papa do ne­o­li­be­ra­lismo puro e cri­mi­noso então muito em car­reira as­cen­dente, tendo de­pois che­gado na sua es­teira os eco­no­mistas norte-ame­ri­canos que fi­caram co­nhe­cidos como sendo de Chi­cago. Assim, en­quanto os mi­li­tares gol­pistas se ocu­pavam em matar e tor­turar, esses téc­nicos tra­taram de fazer o que Fer­gurson de­signa por «des­man­telar o Es­tado So­cial» que o go­verno de Sal­vador Al­lende prin­ci­piara a montar. E aí está con­subs­tan­ciado todo o es­sen­cial da dou­tri­nação Fer­gurson: se­gundo ele, o ne­gre­gado Es­tado So­cial es­tava na raiz de todos males de que so­fria o Chile de então como, in­fere-se, so­frem todos os países que in­correm na ten­tação de o ins­talar. O epi­sódio da série es­cla­re­ce­do­ra­mente in­ti­tu­lada «O Poder do Di­nheiro» não disse uma só pa­lavra acerca das gi­gan­tescas in­jec­ções de ca­pital norte-ame­ri­cano que se se­guiram ao as­sas­sínio de Al­lende e de mi­lhares de chi­lenos, omitiu que o de­sen­vol­vi­mento chi­leno como efec­tiva co­lónia eco­nó­mico-fi­nan­ceira dos Es­tados Unidos e seus anexos além de ter o crime e o sangue como seu ines­que­cível ponto de par­tida tinha de ser, pe­rante o mundo in­dig­nado, a su­posta prova de que a in­fâmia va­lera a pena e re­dun­dara em favor do povo chi­leno, assim a bran­que­ando. É trans­pa­rente, porém que a ma­nobra não se fica por aqui. Es­tamos em 2010, a série é da­tada de 2008 (pre­su­mi­vel­mente antes do Ou­tono da der­ro­cada fi­nan­ceira, mas esse dado não é re­le­vante), e é sa­bido que a guerra do ca­pi­ta­lismo contra o cha­mado «Es­tado So­cial» con­tinua acesa em vá­rios lu­gares do mundo, in­cluindo o nosso País, onde o doutor Co­elho avançou para li­derar esse com­bate talvez com co­ragem, de­certo com des­ca­ra­mento. Poder-se-á pensar, não sem razão, que a ofen­siva de­corre do facto de para os sen­sí­veis na­rizes da gente da Di­reita o tal «Es­tado So­cial» cheirar a so­ci­a­lismo, a in­ter­venção do Es­tado para de­fesa dos mais fracos, ao pro­jecto de uma so­ci­e­dade sem se­me­lhanças com a selva. Mas ha­verá uma outra mo­ti­vação mais ime­diata e menos «ide­o­ló­gica» (para usar aqui uma pa­lavra de que al­guns andam a gostar muito): a gula do «em­pre­en­de­do­rismo» ca­pi­ta­lista para abo­ca­nhar nacos de pos­sível ne­gócio, na­tu­ral­mente que à custa dos in­te­resses das po­pu­la­ções mais dé­beis, porque al­guém há-de pagar as fac­turas. Neste quadro, a dou­tri­nação con­tida nem «O Poder do Di­nheiro» pode ser, também entre nós, um ale­gado bom exemplo, útil para o com­bate ao que ainda sub­siste do pro­jecto de jus­tiça e se­gu­rança que Abril per­mitiu de­li­near. De onde, pro­va­vel­mente, a es­pe­cial re­pug­nância que esta trans­missão me sus­citou.



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