Lágrimas de crocodilo (VII)

Jorge Messias

Uma das téc­nicas mais co­muns no mundo ca­pi­ta­lista é a da «in­sa­ci­e­dade». Bem podem os lu­cros au­mentar e o mer­cado crescer: um bom ca­pi­ta­lista nunca se con­fessa sa­ciado. É um prin­cípio de que ele se serve para en­gordar e crescer. E esta téc­nica com­pleta-se com uma outra. Se o bom ca­pi­ta­lista age em função do lucro e des­preza a ética na­quilo em que ela lhe possa es­torvar a acção, nem por isso deve in­correr no erro de pensar que cada ma­nobra co­mer­cial pode deixar de re­vestir-se de álibis al­truístas des­ti­nados a con­vencer a opi­nião pú­blica de que um roubo é uma lou­vável acção so­cial. Di­ziam os an­tigos que sal­te­a­dores de es­trada e co­mer­ci­antes ti­nham um só deus! Assim con­tinua a ser.

Nesta época de crise para o povo mul­ti­plicam-se as ini­ci­a­tivas com duas caras (ca­ri­dade e ne­gócio lu­cra­tivo) e os ricos pro­curam surgir aos olhos dos po­bres como ben­fei­tores. É o caso das vá­rias faces ge­ne­rosas da «luta contra a po­breza». Ou o dos mi­li­o­ná­rios que re­nun­ciam às for­tunas para se de­di­carem aos po­bres. Contas feitas, os ricos são cada vez mais ricos e só tentam ma­qui­lhar a pró­pria imagem dando apa­rentes es­molas. E essas ac­ções «so­li­dá­rias» surgem sempre com uma marca cristã, in­vo­cando os prin­cí­pios dou­tri­nais que pro­clamam de­verem os bens es­sen­ciais «chegar equi­ta­ti­va­mente às mãos de todos». Aos após­tolos da banca, falar não custa; e os sa­cer­dotes da Igreja, como sempre, apro­veitam a «deixa» para for­ne­cerem ao ca­pi­ta­lismo a co­ber­tura moral de que ele, por si só, não dispõe.

O Va­ti­cano é ca­pi­ta­lista e, como tal, pro­cura captar o lucro em quais­quer si­tu­a­ções. Com o au­mento dos sub­sí­dios pú­blicos ou com a va­lo­ri­zação dos ca­pi­tais pri­vados (dos quais ele é lar­ga­mente ac­ci­o­nista) a sua Igreja, em tempos de crise e de po­breza, acu­mula lu­cros sobre lu­cros, como qual­quer outro ban­queiro bem su­ce­dido. Mas também, tal como os em­pre­sá­rios, chora e ar­re­pela-se por tudo e por nada. Por exemplo, en­quanto a fome alastra diz que os «bancos ali­men­tares» se ar­ruínam ou que muitas IPSS estão à beira da fa­lência, e re­clama do Es­tado au­mentos dos sub­sí­dios. O mesmo acon­tece nas ou­tras áreas so­ciais, tais como o en­sino, a saúde, as mi­se­ri­cór­dias e o campo sócio-ca­ri­ta­tivo, etc. Em troca, a hi­e­rar­quia for­nece ao ca­pital fi­nan­ceiro a capa de «uma ética de pru­dência im­buída de ca­ri­dade», nas pa­la­vras de João Paulo II. Es­tava-se, então, em 1986, muito antes de ex­plodir a ac­tual crise do ca­pi­ta­lismo a qual, no en­tanto, a Igreja nessa al­tura já previa.

Não há dú­vida que o Va­ti­cano pro­fe­tiza a longo prazo!

 

Al­guns nú­meros mesmo que ir­reais

 

Antes do mais, de­vemos pôr os pés na terra e co­nhecer me­lhor o poço sem fundo em que o ca­pi­ta­lismo nos está a mer­gu­lhar. Me­tendo no mesmo saco ca­pi­ta­lismo e ne­o­ca­pi­ta­lismo, cru­zada e im­pe­ri­a­lismo, di­ta­dura ou par­la­men­ta­rismo. Há muitos sé­culos que todos estes falsos va­lores ve­getam e foram cres­cendo ocul­ta­mente na so­ci­e­dade por­tu­guesa. Mi­naram men­ta­li­dades e cri­aram falsos mitos. Por isso mesmo, aceite como um mal ine­vi­tável, o ca­pi­ta­lismo foi so­bre­vi­vendo sem que em ne­nhum mo­mento hou­vesse, entre o povo e o polvo, rup­turas reais e du­ra­douras.

Ac­tu­al­mente, os nú­meros da mi­séria tra­duzem, ainda que aquém da re­a­li­dade, o es­tado em que as coisas se en­con­tram. São dados re­ti­rados de es­ta­tís­ticas ofi­ciais ou dos no­ti­ciá­rios bem con­tro­lados dos jor­nais de mai­ores ti­ra­gens. É a partir dessa base con­creta que po­de­remos fun­da­mentar al­gumas con­si­de­ra­ções sobre a luta contra a po­breza em Por­tugal. A po­breza que já cá está e a outra que aí vem.

Por­tugal, 2011: de­sem­prego, 11% em 6 mi­lhões de postos de tra­balho (cerca de 660 mil de­sem­pre­gados); po­breza (-420 euros/​mês), à volta de 2 mi­lhões de ci­da­dãos; tra­ba­lha­dores em risco emi­nente de po­breza, mais de 500 000; cri­anças po­bres e muito po­bres, cerca de 50% da po­pu­lação es­colar; aban­dono pre­coce da es­co­la­ri­dade, 36%; o sa­lário mí­nimo na­ci­onal, por im­po­sição do Go­verno, per­ma­nece em 475 euros/​mês, sen­si­vel­mente o mesmo valor do li­miar da po­breza.

São alar­mantes dados es­ta­tís­ticos que se agravam cons­tan­te­mente. Após uma dé­cada de feroz ca­pi­ta­lismo, Por­tugal está pobre e ca­minha a largos passos para a mi­séria. O pior vem aí mas já se anuncia: «Todo o poder ao pa­tro­nato, toda a ser­vidão do povo em be­ne­fício do grande ca­pital». O preço as­tro­nó­mico dos crimes e dos erros de cál­culo dos ricos terá de ser in­te­gral­mente pago pelos po­bres.

Só a nossa força mu­dará o nosso des­tino co­lec­tivo. A força de um povo e a sua ca­pa­ci­dade de re­sis­tência à ti­rania.



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