Conta/o de Natal

Aurélio Santos

«A me­nina rica pôs um avental

E deu um bodo aos po­bres»

 

O poema de Si­dónio Mu­ralha vem sempre à me­mória nestas épocas ofi­ci­al­mente pro­cla­madas como «ca­ri­ta­tivas».

Mas este ano talvez as me­ninas ricas pre­firam se­guir o exemplo dos seus papás ac­ci­o­nistas de grande em­presas: em vez de porem aven­tais e dar bodo a po­bres, farão um chá­zinho para as suas amigas, com um bolo com­prado talvez com mo­edas re­co­lhidas das ga­melas de po­bre­zi­nhos: «a crise chega a todos, não é? E todos devem con­tri­buir para salvar o País!»

Re­firo-me, fique claro, à de­cisão dos ges­tores de grandes em­presas (al­gumas com par­ti­ci­pação de ca­pital pú­blico!) de dis­tri­buir já este ano os lu­cros, para estes não serem abran­gidos pelo au­mento de im­postos de­cre­tado pelo mi­nistro das Fi­nanças para o pró­ximo ano.

«Au­mento de im­postos não é coisa que se im­ponha  a quem tem di­vi­dendos a re­ceber (dirão os se­nhores ac­ci­o­nistas), isso pre­ju­di­caria o  afluxo de ca­pi­tais».

Teria sido pos­sível, como propôs o PCP, im­pedir tal de­sa­foro com uma lei da As­sem­bleia da Re­pú­blica. Mas – PASME-SE! – a pro­posta do PCP não foi apro­vada POR OPOSIÇÃO DO PAR­TIDO SO­CI­A­LISTA! Tendo o líder do Grupo Par­la­mentar  do PS, Fran­cisco de Assis, ame­a­çado de­mitir-se se a ban­cada do PS, re­ta­lhada pelos re­morsos, vo­tasse pela apro­vação da pro­posta do PCP!

Como S. Fran­cisco de Assis, o «po­ve­rello», se  re­vol­veria na cova pe­rante tal de­sa­foro do seu ho­mó­nimo, tão ge­ne­roso e des­ca­rado de­fensor da banca, da fi­nança e da bolsa!

Mas, quanto a mim, este epi­sódio é muito es­cla­re­cedor do pe­ríodo eco­nó­mico e po­lí­tico que es­tamos vi­vendo.

«Contos de Natal, cheios de bon­dades e de ge­ne­ro­si­dades? Isso são ve­lha­rias – dirão  ainda os grandes ac­ci­o­nistas. Já não cor­res­pondem à nossa época, tal como essa ve­lharia da luta de classes. Os po­bres que pa­guem a crise: eles até podem ali­mentar-se com os restos dos res­tau­rantes, como disse o Dr. Ca­vaco».

Claro: para eles o que conta não são «contos de Natal» – são as contas do Natal.

 



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