O dirigente associativo no interior das contradições sociais

A. Mello de Carvalho

Os di­ri­gentes des­por­tivos da grande mai­oria dos cerca de 12 000 clubes des­por­tivos por­tu­gueses de­batem-se cons­tan­te­mente com o pro­blema dos meios dis­po­ní­veis para a sua acção (fi­nan­ceiros e hu­manos). As queixas são ge­ne­ra­li­zadas e atra­vessam o sis­tema des­por­tivo de alto abaixo.

A «vida» destes di­ri­gentes, nor­mal­mente de­vo­tada até ao sa­cri­fício pes­soal e es­for­çada até ao can­saço, é mal co­nhe­cida entre nós. Ci­da­dãos ge­ne­rosos, de grande ca­pa­ci­dade e de­di­cação, cansam-se ao fim de anos de uma luta contra os obs­tá­culos cri­ados por um es­tado de pe­núria ge­ne­ra­li­zada. Os poucos es­tudos que, fi­nal­mente, co­meçam a surgir, não são de modo algum ca­pazes de es­cla­recer de­vi­da­mente esta si­tu­ação.

Mas a acre­di­tarmos na­queles que são re­a­li­zados em si­tu­a­ções so­ciais se­me­lhantes (Es­panha e França), um di­ri­gente des­por­tivo «dura», em média, menos de cinco anos.

Esta si­tu­ação que, em termos apro­xi­mados, de­verá ser a nossa, traduz uma enorme «he­mor­ragia» de ener­gias e uma grande perda so­cial. Em pri­meiro lugar, é o des­porto que perde mi­lhares e mi­lhares de pos­sí­veis obreiros do seu pro­gresso. Mas, em se­gundo lugar, é a pró­pria so­ci­e­dade que vê li­mi­tada a ex­pressão de uma energia cri­a­dora ab­so­lu­ta­mente es­sen­cial para o seu pro­gresso de­mo­crá­tico.

A si­tu­ação em que actua a mai­oria destes di­ri­gentes (quantos? 100 000? 150 000?) des­por­tivos é, de facto, in­sus­ten­tável. Clama-se contra a falta de ge­ne­ro­si­dade, o cres­cente in­di­vi­du­a­lismo e egoísmo dos in­di­ví­duos para jus­ti­ficar a crise do di­ri­gismo des­por­tivo. Talvez estas ca­rac­te­rís­ticas sejam hoje mais mar­cantes do que o eram há 20 e 30 anos. Mas qual a causa, ou as causas?

Estas estão por de­ter­minar pelo que o fe­nó­meno perde cla­reza para ser bem com­pre­en­dido. Mas, pelo con­trário, está bem pa­tente o agra­va­mento das di­fi­cul­dades de acção no úl­timo de­cénio, e es­pe­ci­al­mente agora que nos de­fron­tamos com uma gra­vís­sima crise fi­nan­ceira, eco­nó­mica e so­cial.

O des­porto é di­rec­ta­mente con­di­ci­o­nado pela evo­lução das ne­ces­si­dades dos in­di­ví­duos. Mas esta é só uma das «forças so­ciais» que de­ter­minam a sua evo­lução. De facto, as ca­rac­te­rís­ticas da so­ci­e­dade, no seu todo, em es­pe­cial as que ex­primem o pre­do­mínio da ló­gica de ob­tenção do má­ximo lucro, exercem uma in­fluência de­ter­mi­nante.

De facto, é do choque entre estas duas «ló­gicas» (a das ne­ces­si­dades e a do lucro) que re­sulta o es­sen­cial da di­nâ­mica so­cial que de­ter­mina já o pre­sente do des­porto, e exer­cerá uma in­fluência mais forte no seu fu­turo. No mo­mento, o en­tre­cru­za­mento destas duas grandes li­nhas de fundo da evo­lução so­cial pro­vocam fis­suras pro­fundas em todo o sis­tema des­por­tivo.

Até há cerca de 30 anos, a har­monia do sis­tema era real. Pelo menos, em termos dou­tri­ná­rios: sobre uma prá­tica pouco sig­ni­fi­ca­tiva e pouco ou nada or­ga­ni­zada, de­sen­volvia-se a prá­tica com­pe­ti­tiva es­tru­tu­rada pelos clubes e fe­de­ra­ções, de onde emergia, com na­tu­ra­li­dade, uma pe­quena per­cen­tagem dos mais do­tados que se de­di­cavam ao des­porto de alto nível (de então...).

Esta pers­pec­tiva tra­duzia, com fi­de­li­dade, a visão cou­ber­ti­niana do de­sen­vol­vi­mento des­por­tivo, sem que se ve­ri­fi­casse qual­quer dis­função ou an­ta­go­nismo entre os «mo­mentos» da prá­tica. Esta pers­pec­tiva dou­tri­nária ainda hoje ori­enta a acção e in­forma o pen­sa­mento de muitos di­ri­gentes. Só que es­quecia um as­pecto im­por­tante: esta «pi­râ­mide» re­feria-se, quase em ex­clu­sivo, a al­gumas ca­madas mi­no­ri­tá­rias da po­pu­lação, dei­xando de fora a grande mai­oria.

A partir da dé­cada de ses­senta tudo isto co­meçou a al­terar-se so­frendo, entre nós, uma sú­bita ace­le­ração com a enorme trans­for­mação so­cial, po­lí­tica e eco­nó­mica pro­vo­cada pelo 25 de Abril de 1974. A partir desse mo­mento aqueles três ní­veis da prá­tica perdem har­monia que rei­nava entre si, e do ponto de vista so­cial co­meçam a ser equa­ci­o­nados de forma di­fe­ren­ciada.

Esta evo­lução é pro­vo­cada pre­ci­sa­mente por aquela di­nâ­mica: sob a pressão das ne­ces­si­dades sen­tidas pela ge­ne­ra­li­dade da po­pu­lação dá-se uma sú­bita ace­le­ração da di­fe­ren­ci­ação das prá­ticas, pro­gres­si­va­mente re­cu­pe­rada e ori­en­tada pela pro­cura da ren­ta­bi­li­zação fi­nan­ceira. As con­sequên­cias tra­duzem-se numa pro­funda crise de todo o sis­tema que bas­cula sob pressão de forças con­tra­di­tó­rias e ma­ni­festa, cada vez mais acen­tu­a­da­mente, a ina­de­quação das an­tigas es­tru­turas às ne­ces­si­dades ac­tuais.

A si­tu­ação pro­vo­cada por este sis­tema con­tra­di­tório de forças é mal per­ce­bida pela ge­ne­ra­li­dade dos di­ri­gentes. Não apa­rece ainda com su­fi­ci­ente cla­reza qual a origem e o sig­ni­fi­cado da crise.

Al­guns re­fu­giam-se na de­fesa dos va­lores da ética des­por­tiva como a única forma de re­cu­sarem uma mu­dança que leva de ven­cida tudo aquilo em que acre­di­taram e de­ter­minou o seu tra­balho. Ou­tros ali­nham ale­gre­mente com as novas pers­pec­tivas, pouco ou nada se pre­o­cu­pando com o sig­ni­fi­cado e as ra­zões das novas so­lu­ções e até com o facto de se se saber já que muitas delas não são so­lu­ções de coisa ne­nhuma.



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