O biombo

Correia da Fonseca

Desta vez, o «Prós e Contras» propunha-se em título fazer-nos «Compreender a Crise». Não conseguiu, se é que de facto o tentou a sério. E, contudo, era natural que nos tivesse criado expectativas nesse sentido: afinal, jornalista moderadora à parte, todo o programa havia sido entregue a quatro homens inteligentes, embora provavelmente uns mais que outros, cada qual em seu cantinho. Como era esperável, D. José Policarpo situou o seu discurso sobretudo na relevância dos factores espirituais, dispensando-se de denunciar fariseus e vendilhões do templo decerto porque nem tudo o que está nas Escrituras é para ser recordado a qualquer momento. Adriano Moreira teve, entre outros, um momento curioso quando apontou a necessidade de «saber quem nos governa»: dir-se-ia que ia denunciar os engenheiros belmiros nacionais ou estrangeiros que de facto dão as ordens a que outros obedecem, mas afinal percebeu-se com desapontamento que quase apenas lhe interessava saber os nomes dos deputados e dos ministros. José Barata-Moura pareceu-me, com razão ou sem ela, que após uns veementes e enérgicos momentos iniciais optara por adoptar um tom mais discreto, digamos assim, sem perda de se aplicar a sublinhar o mais importante. Dir-se-ia que nele houve ao longo do serão a preocupação de que ninguém o acusasse de estar ali como mandatário da candidatura de Francisco Lopes, o que poderia constituir uma espécie de arma de arremesso contra si e desvalorizar o impacto das suas razões no espírito dos telespectadores. De qualquer modo, foram dele as palavras que colocaram as questões no seu devido lugar e barraram o caminho a equívocos ou nevoeiros, designadamente quando sublinhou que «a qualidade do endividamento é fundamental», isto é, que uma coisa é a contracção de dívida para a especulação e o consumo e coisa diferente é a dívida constituída para permitir produzir. A este tema voltou Barata-Moura na sua última intervenção ao sublinhar que «a viragem é em direcção à produção». O que também significava que a viragem passa pela valorização do factor Trabalho que está na própria raiz do acto de produzir.

 

Dom Quixote e os deveres

 

Quanto a António Barreto, foi dos quatro o mais espectacular, o que não terá surpreendido ninguém, mas sendo daqueles espectáculos que exigem de nós pachorra e disponibilidade. Aliás, basta olhar para ele para suspeitarmos de que há ali qualquer coisa de histriónico: com a cabeleira e a barba agora grisalhas, a cabeça de Barreto lembra-nos a de um Dom Quixote regressado de séculos antigos. Porém, não demorará muito tempo a apercebermo-nos de que este Dom Quixote é diferente, tem uma particularidade decisiva: ele é a sua própria Dulcineia, é por si próprio que está enamorado. E acontece até que essa sua dupla condição como que emite sinais identificadores: assim, por duas vezes António Barreto referiu que a Revolução de Abril foi uma perda de tempo, provocação reiterada que terá sido afinal uma versão específica da tradicional garridice feminina. Mas o que foi mais importante e significativo ao longo das suas intervenções foi a insistência com que Barreto quis diluir sob a palavra «nós» a responsabilidade pela actual situação económico-financeira do País que, bem o sabemos, só pode ser legitimamente imputada a «eles». Até surpreende que um homem com os recursos intelectuais que Barreto indiscutivelmente tem se conforme com a prática de repetir uma mistificação que, por ter sido intensamente injectada no discurso mediático, se transformou num lugar-comum mentiroso que como escandalosa mentira é reconhecida pelos milhões de cidadãos portugueses a quem agora é imposto o pagamento de uma factura a cuja responsabilidade são alheios. «Nós, nós, nós», repetiu Barreto ao longo do programa. E ele tem de saber, até porque conhece bem os quatro cantos do País e a gente que o habita, que a palavra e a mistificação que ela comporta servem lindamente como biombo para ocultar responsabilidades, efectivas violências, crimes. Usando-a, insistindo nela, António Barreto desce abaixo de si próprio, o que não é descer pouco. E, além, do mais, quem usa uma cabeça que tanto lembra Quixote acaba por ter algumas obrigações.



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