Revolução <br>da multiculturalidade
Durante três dias, o Auditório 1.º de Maio transformou-se num enorme palco de músicas do mundo, com as sonoridades do planeta, do jazz ao rap, passando pelo fado ao folk, a promover a harmonia e o entendimento entre culturas. Uma celebração da riqueza da multiculturalidade, que, na Festa do Avante!, atingiu muitos milhares de pessoas que sonham com a construção de uma nova sociedade, sem exploradores nem explorados.
Este foi ainda um espaço de amizade, de encontro, de amor e de paixão, onde a Carvalhesa, a música da Festa, marcando o início e o fim dos concertos, fez dançar, sorrir, viver intensamente momentos únicos e inesquecíveis. Sons originários de Trás-os-Montes que entram nos corações de todos, novos e menos novos, que não conseguem explicar a razão do movimento do seu corpo, mas que querem ser livres.
Lutar com alegria
«Vamos dizer às troikas que a luta também é alegria», ouviu-se na abertura do Auditório, que acolheu os Djumbai Jazz, apresentados como os «herdeiros da tradição mandinga» e que, com uma intensa energia, proporcionaram um espectáculo repleto de boa disposição. «Vocês são extraordinários, vamos ter muitas surpresas para vocês», prometeu Maio Coopé, vocalista da formação da Guiné-Bissau, que se fez acompanhar por músicos incríveis e três imparáveis bailarinas, que ostentavam vestes típicas do seu país.
Os instrumentos, ora mais tradicionais, nomeadamente a kora, ora modernos, faziam dançar os corpos ainda enferrujados, mas que a partir daquele momento deixavam de o estar, tal não era o ritmo avassalador que os contagiava. A terminar o vocalista referenciou Zeca Afonso, que no primeiro intervalo, assim como em muitos outros, teve o seu momento, com «Redondo Vocábulo».
Porque estas são também canções de protesto e de crítica social, seguiu-se Chullage, com os mc's Chullage e Lowrasta a lançarem a «Rapressão» para despertar as consciências, tendo apelado ao «grito de revolta» do público. «Será que vais continuar a fechar os olhos para não ver; tu vais voltar as costas fingindo não saber; sabendo que tanta gente sofre sem um pão; será que não te cria nem um pingo de compaixão», interrogou. Este foi ainda um momento de improvisação e de poesia, com «Abril M-águas mil; trago-as mil; afogo-as nas mil; muitas mil que nesse dia; estarão nas ruas da amargura; celebrando Abril».
A primeira noite findou com os Cais do Sodré Funk Connection, uma união perfeita de nove talentosos músicos que «espalharam» o funk e a soul no recinto. «Getting the Corners» foi o primeiro tema a «incendiar» o recinto. Muitos outros se seguiram, como «Summer days of fun», a mostrar que a vocalista é detentora de uma voz doce e portentosa, levando aos pícaros do prazer muitos dos que ali se encontravam. A banda inclui ainda um outro vocalista, imparável, a fazer lembrar James Brown. Terminaram com «Do what you wanna», um original, que mais não é do que um «hino à liberdade».
Justa homenagem
No sábado, a programação do Auditório começou com os Canto Daqui, que prestaram homenagem a dois vultos da música portuguesa: José Afonso e Adriano Correia de Oliveira – «amigos maior que o pensamento». «Vejam bem», «A morte saiu à rua», «Ò minha mora madura» – numa referência à candidatura do Cante Alentejano a Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO, que mereceu a concordância de todos – «Tu gitana», «Quanto é doce» e «Canção do Linho», esta dedicada «à luta dos operários do Vale do Ave», foram os primeiros temas cantados e tocados por esta formação de Braga, que contou com o acompanhamento das palmas e do coro do público, que se revelou, igualmente, de grande talento e sensibilidade musical. O espectáculo prosseguiu com «Maria Faia», «Traz outro amigo também», «Morte que mataste lira», um dos temas mais aplaudidos, «Quando eu era mais pequenino» e «Venham mais cinco». «Por estas e por outras é que se diz que não há Festa como esta», sublinhou um dos músicos.
Da música portuguesa «viajamos» para a música klezmer, com os Melech Mechaya, pioneiros neste festivo tipo de música, a fundir panóplia de estilos, como a música cigana, árabe e balcânica. Aqui destacou-se o violino e a flauta, assim como o clarinete, que puxavam pelos corpos, num frenesim de emoções à flor da pele.
Os Uxu Kalhus, também eles portugueses, continuaram a Festa, desta vez com o melhor do folk, que combina a música tradicional com a mais actual. Um som «Extravagante», ousado, electroacústico. «Erva Cidreira», que encerrou a actuação, «O funk dos esquilos» e «Ponha aqui o seu pézinho» foram outros dos temas dados a conhecer.
Ininterruptamente chegavam e partiam mais pessoas, tornando-se mensageiros, em outras paragens, do que de bom ali escutaram, trazendo cada vez mais pessoas ao Auditório 1.º de Maio. Nuno Costa (guitarra eléctrica), João Moreira (trompete), Óscar Graça (teclados), Bernardo Moreira (contrabaixo) e André Sousa (bateria) formam o Quinteto Nuno Costa, que ali apresentou o melhor do jazz «made in» Portugal, onde a improvisação ultrapassou barreiras, numa harmonia de sons.
A Naifa, logo de seguida, subiu ao palco apresentando o seu mais recente álbum «Não se deitem comigo corações obedientes», e outros temas, que unem o fado ao rock, e que ficarão para sempre armazenados na nossa cabeça. «Os tempos são de luta», disse Maria Antónia Mendes (voz), acompanhada por Luís Varatojo (guitarra portuguesa), Sandra Baptista (baixo) e Samuel Palitos (bateria). «Gosto da Cidade», «Filha de duas mães», «A música» e «Todo o amor do mundo» levaram ao rubro aquele espaço, apinhado de gente.
Seguiu-se os L.A. New Mainstream, uma nova geração de músicos de jazz portugueses que, ao lado da trombetista Lars Arens, formaram uma banda que se distingue pela sua qualidade. Uma simplicidade complexa, que atrai e agrada.
À Festa regressaram ainda os Terrakota, que, para agrado de todos os seus fãs, tocaram temas novos, misturando ritmos, trazendo liberdade rítmica ao espaço. A novidade, este ano, foram os convidados que acompanharam esta formação: K Kota (Nigga Poison) e Kota Biris (ex Algazarra). «Esta Festa é fantástica. Acompanhem-nos», apelou o vocalista, que convenceu milhares, que não couberam no Auditório, a dançar a «todo o vapor», onde palavras como «Revolucion» foram uma constante, sempre com o «Pé na tchon».
Com a noite já instalada, foi a vez dos Pasion surpreenderam aquele público que ali se mantinha. Ao Auditório proporcionaram uma viagem pelo mundo do flamengo, misturado com os ritmos de Cuba e de outras partes do mundo, sendo que o ponto de partida foi a Quinta da Atalaia. «Bésame Mucho» foi um dos temas cantarolados por todos.
O jazz regressou com Nelson Cascais e The Mingus Project, numa homenagem a um dos mais importantes músicos norte-americanos do século XX, cuja música e mensagem social e política continuam tão actuais.
O dia, naquele palco, terminou com os The Whiskey Dogs, onde a guitarra, o contrabaixo, o bandolim e o banjo foram superiores. Um quarteto de cordas formidável, surpreendente, muito festivo, que trouxe o melhor da música feita nos EUA, nos anos 20.
Do bluegrass ao fado
Com o tempo a esgotar-se, havia que desfrutar da melhor maneira, a única possível na Festa, o domingo. Os primeiros a subir ao palco foram os Stonebones & Bad Spaguetti, banda de bluegrass cantado em português. Àquele magnifico público, a formação apresentou o melhor deste estilo, com o banjo, a guitarra, o contrabaixo, o bandolim, o kazoo e o washboard a marcarem o ritmo em temas como «Ó carteiro», «O quiosque lá da praça», «Old home place», «Coveiro» e «Ai Portugal».
A tarde, quente, prosseguiu com o Quinteto Motor André Fernandes, que ofereceu momentos únicos e composições originais, onde a improvisação não se sobrepôs à técnica dos instrumentos.
Antes do Comício no Palco 25 de Abril, actuou Luísa Basto, que ali apresentou o seu mais recente trabalho: «Minha vida, meu amor», com letras de Nuno Gomes dos Santos, músicas de Nuno Nazareth Fernandes e Paulo de Carvalho, arranjos de Samuel e capa de Alberto Bemfeita. A todos eles, Luísa Basto agradeceu a participação naquele projecto, em que todas as músicas começam por «Meu amor». Numa homenagem aos presos políticos do fascismo, Luísa Basto cantou ainda «Abandono», um extraordinário poema de David Mourão Ferreira, e terminou com «Fardas de Abril». Gritou-se «Lindo!».
Com o dia quase a terminar e a noite a chamar cada vez mais pessoas, a Big Band da Nazaré, sob a direcção de Adelino Mota, trouxe-nos um som alegre e contagiante, com temas que foram do clássico até ao mais moderno.
Hélder Moutinho abriu a «noite de fados» que terminaria com Ana Moura. Ambos trouxeram à Festa um espectáculo muito interactivo, onde a «saudade entrou à porta» e as palavras ecoaram além fronteiras. A fadista iniciou o espectáculo, que bateu e ultrapassou todas as expectativas, com «Búzios», tema cantado em uníssono com a plateia, assim como «Sou do fado», «Casa da Mariquinhas» e «Leva-me aos fados». Voltou-se a ouvir «Lindo!», e Ana Moura, de uma beleza natural e com uma forte presença em palco, terminou com um «Muito obrigada» sincero, revelador de como havia gostado de estar na Festa do Avante!.