Simplismos...
ou a incomodidade do complexo
Agostinho Lopes
Os resultados eleitorais e os problemas do PCP
desencadearam uma infinidade de análises e reflexões onde prevalecem,
de forma inflacionada, as leituras simplistas e visões a preto e branco.
É fácil compreender as vantagens e as conveniências dessas
leituras e dessas visões. Mas ser comunista obriga a ser exigente na
avaliação da realidade social e política. Obriga à
incomodidade das dificuldades no decifrar o complexo.
O simplismo facilita a resposta, pode sossegar consciências, mas não é garantia de acerto ou adequação das respostas aos problemas e questionamentos existentes. Bem pelo contrário. O simplismo facilita a agressão grosseira no debate, encaixa nas leituras e critérios dos media, em particular da televisão, e nos seus jogos de poder político-partidários e lógicas de mercado. Mas não resolve um só dos nossos problemas. Agrava-os a todos. Facilita a inserção no debate das emotividades, dos choques de protagonistas, multiplica os vectores de confusão. Insere no debate mais ruído. «Complexifica», confunde, o complexo.
A culpa é dos outros...
Um primeiro e inaceitável simplismo, violador da lealdade do debate, é a redução das teses adversárias à caricatura. E é caricatura dizer que o Comité Central do PCP atribui as causas dos maus resultados eleitorais apenas e somente a razões externas. E é um espantoso simplismo e uma cedência à pressão de uma linha mediática contra o PCP, querer afastar essas causas externas da explicação complexa dos resultados! Como é outro espantoso simplismo querer afastar da avaliação dos resultados eleitorais próprios, a força, capacidade, tácticas e estratégias, e resultados de concorrentes e adversários. Como se o espaço político não fosse um campo de forças, influenciando-se mútua e complexamente, em que não há um só resultado de uma só componente, que possa ser avaliada independentemente do resultado de cada uma e de todas as outras. Espaço político que não é sequer um tabuleiro de xadrez, e muito menos a simplista e simplória ideia de um campo/jogo de futebol!
Como se este espaço político e a nossa intervenção eleitoral não sofressem o condicionamento do tempo histórico e da conjuntura nacional e internacional em que se inscrevem.
Simplismos, ou simplistas, também os que afirmam que com outras orientações ou política de alianças, mudada a direcção, logo aí viriam bons resultados, ou pelo menos se susteria a baixa eleitoral. Simplismos que se desfazem na comparação com os processos eleitorais noutros países.
Simplismos que o recente terramoto eleitoral em França põe a nu. Não tinha sido legítimo concluir que os desaires eleitorais de partidos similares se deviam às profundas alterações («mutações») a que procederam na sua estrutura orgânica, modo de funcionamento, orientação e política de alianças. Ou de que outros viram o seu score eleitoral subir porque o fizeram. A realidade política de cada país, de cada partido, é um caso cuja complexidade intrínseca não admite simplificações, e muito menos generalizações abusivas ou cópias esquemáticas.
Anote-se que o simplismo da «mudança» da direcção e do presidente/secretário-geral face a derrotas eleitorais, tão cara aos partidos sociais-democratas e da direita, desempenha um não pouco apreciável papel na continuidade das políticas de direita favoráveis ao capital e ao capitalismo. Essas «mudanças» permitem recriar a ilusão eleitoral da «mudança» e realizar a cosmética necessária para a «alternância». Mudam os partidos de secretário-geral e de direcção, mudam os governos de partidos, para que a política possa continuar exactamente a mesma. E se isto não basta (e já não basta em Portugal), então mude-se o sistema eleitoral! (1). Questão, sem dúvida, central nos problemas dos regimes políticos ocidentais, nas suas derivas recentes à direita e à extrema direita, na instabilidade e abstenção do eleitorado, na descrença e desespero dos seus cidadãos.
Significam estas considerações que podemos desvalorizar, subestimar, os sucessivos resultados eleitorais negativos e a perda de eleitores pelo PCP/CDU?
Significam estas dificuldades que renunciamos ao esforço teórico, de praxis política, de militância, para casar partido comunista com influência e bons resultados eleitorais? Não. Pura e simplesmente que não devem os comunistas abandonar-se à facilidade dos simplismos na resposta à complexidade dos problemas ou à natural pressão dos argumentos ideológicos e políticos dos adversários do PCP. Ou a uma lógica de avaliação dos resultados eleitorais que não tenha em conta a identidade e objectivos deste Partido.
As duas linhas, ortodoxos e renovadores...
Outro espantoso simplismo, nos dias que correm, sobre o PCP é a história velha e revelha dos ortodoxos e renovadores. Uma história velha no movimento comunista as duas linhas, a que acaba sempre por se juntar uma sempre original «3ª via»... Muitos se lembrarão ainda das anedóticas linhas vermelha e negra nas movimentações maoistas e ml dos anos sessenta e setenta. Também aqui é fácil perceber o interesse da comunicação social e adversários: estão facilitados os julgamentos sumários, a escolha e a promoção de protagonismos e protagonistas, de fracturas e facturas...
Mas também aqui não ficam facilitados o debate, a reflexão, o aprofundamento dos problemas que atravessam o PCP e a que temos de responder. Porque se substituirá vezes demais a rotulagem à necessária argumentação. Porque assim estarão facilitadas as emoções de antagonistas assanhados, onde se pede esforço de racionalidade e serenidade. Porque assim estará criado o caldo de cultura para oportunismos de todos os matizes... onde o discurso de louvação ou de transgressão da «norma», da «ortodoxia» funcionará como única sinalética da qualidade «renovadora» ou «ortodoxa» do militante. Porque assim se obscurece a realidade partidária, atravessada pelos conflitos da sociedade em que se inscreve. Necessariamente, conflitos e dinâmicas de classe, mas também conflitos e dinâmicas de poder, jogos de subjectividades e personalidades, um complexo quadro de problemas internos não resolvidos, cristalizados no profundo espaço político e histórico da vida partidária. Conflitos e problemas presentes em qualquer estrutura organizada e com densidade histórica, a que o PCP não pode naturalmente ficar imune, porque se o fosse, não seria deste mundo...
Delito de opinião ou conflito com a democracia partidária...
A antinomia ortodoxos/renovadores tem ainda uma preciosa utilidade, embora interesseiros objectivos. É a transformação (mutação) do delito de comportamento em delito de opinião, como é uma evidência nas exclamações e reflexões, mais ou menos adjectivadas, na intervenção em curso de alguns ditos e assumidos «renovadores» ou mesmo ex-renovadores (ver Pina Moura).
De facto, a crítica que vem sendo feita pela Direcção do Partido, é muito precisa e cirurgicamente localizada sobre comportamentos, que afrontam e se contrapõem às regras de funcionamento do PCP, consagrados nos seus Estatutos: o debate na praça pública dos problemas internos; a promoção de iniciativas que visam ultrapassar e contrapor-se aos espaços partidários existentes. De facto, a tentativa de configurar uma tendência de opiniões/fracção organizada em oposição à que seria a «tendência» da Direcção e do XVI Congresso. É rotundamente falso que as críticas sejam dirigidas contra a diferença, diversidade, oposição de opiniões! O simplismo ortodoxos/renovadores permite deslocar para o campo das diferenças de opinião o que é efectiva subversão do campo da prática partidária. Não há delito de opinião, há um assumido conflito com as regras estatutárias do PCP e com a democracia partidária.
E se seria um enorme simplismo julgar que a ofensiva em curso contra o PCP se resolve com a aplicação pura e simples (administrativa) dos Estatutos (2), tal não pode significar a sua desvalorização ou a cumplicidade na sua alteração/subversão pela criação de factos consumados, à margem das regras e da vontade dos comunistas democraticamente expressas em congresso.
Circulação horizontal de ideias?!
O PCP continua a ter os espaços necessários para um debate profundo, sério, com respeito pela fraternidade, frontalidade, que devem os militantes do Partido uns aos outros. O que não quer dizer que o seu funcionamento é sempre o melhor possível! E, sobretudo, que não careça e não possa ter melhorias e aperfeiçoamentos no desenvolvimento da sua democracia interna (3). Mas é uma democracia exigente. Exige, como condição absolutamente necessária, militantes e militância. Exige, também, um estilo de comportamento partidário de escrupuloso respeito pela opinião do outro, capacidade de ouvir e de repúdio da intriga e da maledicência, coragem de assumir e aceitar a diferença, e na vontade de decidir e trabalhar com lealdade, segundo as regras da democracia interna definida nos Estatutos.
Não se fuja, no entanto, à questão central deste problema: há debate democrático sem regras? Quem deve e quem pode defini-las? Quem pode e em que condições, alterá-las? E a resposta só pode ser uma: os comunistas, e em congresso.
Não se iluda e não se queira confundir mais uma vez a complexa realidade do debate contraditório no interior do Partido, e em particular no apuramento das suas conclusões, através do lançamento do indefinido conceito de circulação horizontal de ideias (4), ou pior ainda, pela invocação do debate em rede, via Internet! Como se uma questão política de fundo a participação e a integração das opiniões dos militantes no resultado final do debate pudesse resultar de uma solução técnica (5). O que não significa desprezar a importância e a necessidade de reflexão sobre o que as novas ferramentas da comunicação podem trazer (e já estão a trazer) ao relacionamento entre militantes e estruturas orgânicas e ao funcionamento do Partido.
Alguns camaradas em conflito, nos seus comportamentos partidários, com os Estatutos, sabem que é inaceitável o uso que vêm fazendo dos espaços mediáticos na expressão das suas legítimas divergências com a Direcção. Porque são espaços a que a generalidade dos membros do Partido não tem acesso. Porque funcionam como armas de arremesso, chantagem e desestabilização das organizações do Partido. Porque são espaços determinados, na forma, dimensão e tempo, pelos adversários/inimigos do PCP. E que apenas são «cedidos» enquanto servirem a guerra contra o PCP ou a guerra das audiências. Devem interrogar-se, esses membros do Partido, por que razão, enquanto estiveram «do outro lado», enquanto foram «ortodoxos» ou da Direcção, esse espaço lhes foi, em geral, ostensivamente negado e vedado no desenvolvimento das tarefas partidárias. A não ser quando o discreto charme da dissidência começava a evidenciar-se...
Significam estas considerações que tudo vai bem no Partido Comunista Português? Mentira. Mas é necessário afirmar com clareza que não é admissível, não é aceitável que, para corrigir o errado, desfazer o mal feito, alterar o que for de alterar, se tenha de proceder da forma que vem sendo ensaiada por alguns membros do Partido, e em particular com recurso a um intenso «bombardeamento» mediático... Não basta afirmar boas intenções!
Não pode valer tudo para defendermos o que julgamos ser melhor para o Partido. Que a uma asneira se responda com uma asneira maior, até ao confronto total e final! A não ser que simplisticamente e religiosamente se julgue que do caos nascerá a luz. Que depois do big bang final nascerá o partido comunista que vai ter bons resultados eleitorais, além de ser comunista!
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(1) Nem sequer vão tão longe, como se propunha no velho aforismo de Lampedusa, «é necessário que tudo mude para que tudo fique na mesma».
(2) Cabe, a propósito, referir ainda o simplismo dos que fazem dos Estatutos do PCP, e em particular das suas normas disciplinares (como das de qualquer outra organização) um código de medidas administrativas. Porque os estatutos são um pacto político essencial em qualquer estrutura organizada. São mesmo política em «estado puro». Porque estruturam, regulam a forma de exercício do poder na estrutura, e as fronteiras desse poder. A sua aplicação é que pode ser mais ou menos administrativa, isto é, mais ou menos adequada ao contexto político existente e aos objectivos pretendidos.
(3) Aliás, foram sendo feitos diversos aperfeiçoamentos nos últimos congressos, dando seguimento ao que se afirmou no XIII Congresso: «na estrutura e funcionamento do Partido não há regras intemporais e imutáveis» (A. Cunhal, na intervenção inicial); «As palavras que exprimem as características fundamentais, não cobrindo entretanto toda a riqueza da identidade do PCP, não correspondem a princípios, conceitos e práticas intemporais e imodificáveis (...)» (da Resolução Política).
(4) De que já há, aliás, no nosso funcionamento, diversas expressões: plenários de militantes, reuniões de quadros, comissões nacionais, e a existência de espaços no «Avante!» aquando dos congressos (e agora na Conferência Nacional), abertos a expressão das opiniões dos membros do Partido.
(5) São desde logo evidentes as
dificuldades e desigualdades de acesso a esses espaços de debate da generalidade
dos membros do colectivo partidário! Desigualdades agravadas no acesso
aos «espaços» nos órgãos de comunicação
social.
«Avante!» Nº 1484 - 09.Maio.2002