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Cimeira da Alimentação «Roma+5»
A fome vai continuar...

• João Vieira

Cinco anos depois da Cimeira de 1996, novamente em Roma, a FAO realiza novo encontro internacional virado para carências da alimentação no mundo. Paralelamente à Cimeira, e sobre o mesmo tema, realizou-se um Fórum Alternativo onde esteve presente a CNA, única representante portuguesa nessa iniciativa.

Se por parte do Fórum das organizações se consegue um bom documento final em tomo de um tema fundamental que é a soberania alimentar, o mesmo não se pode dizer do lado dos objectivos da FAO. Pese embora o mérito da FAO para organizar estes encontros, a ser um espaço que mantém algum verniz democrático para a abordagem desta questão da fome no mundo.

Na Cimeira de 1996 traçou-se então como meta reduzir para metade a fome no mundo; não fossem as estatísticas fornecidas pela China, o problema ter-se-ia agravado.

Com efeito, as promessas dos países ricos não foram cumpridas. As ajudas diminuíram 50% para a agricultura, que é o meio de vida de 70% dos pobres do mundo. Em consequência, o número de pessoas que alcançaram mais alimentos é de apenas 6 milhões, em lugar de 22 milhões que seriam necessários para alcançar em 2015 o objectivo fixado em 1996. A este ritmo serão precisos 45 anos. São cerca de 800 milhões de pessoas que sofrem de fome, e este número concentra-se essencialmente nas zonas rurais.

Mas com as actuais políticas neoliberais para a agricultura e a sua inclusão na OMC, que retiram a possibilidade de tirar o sustento da terra tanto nos países ricos como nos países pobres, o problema da fome tem tendência a agravar-se.

A título de exemplo, mesmo nos Estados Unidos desaparecem por semana 550 explorações agrícolas (e não são pequenas). Trata-se de uma alta concentração da produção agro-exportadora.

Na União Europeia desaparecem por semana 4 500 explorações agrícolas com o mesmo objectivo de concentração agro-exportadora, e fornecimento a muito baixo preço da indústria, e fraude na distribuição alimentar.

Este modelo de política agrícola é em grande parte responsável pela fome nos países pobres e por uma alimentação de péssima qualidade nos países ricos.

Esta iniciativa da Alimentação acabou sem resultados palpáveis, para não dizer que se tratou de uma farsa.

A declaração final do encontro, que paradoxalmente foi aprovada logo no primeiro dia pelos chefes de Estado, com uma redacção que é um retrocesso em relação ao passado (onde anteriormente se lia direito à alimentação, passa agora a dizer direito ao «acesso» à alimentação).

Paralelamente com o desinteresse pela questão por parte dos países ricos, dos 28 da OCDE, só dois estiveram presentes ao nível de chefe de Estado.

A FAO atravessa também um período complicado. A sua existência e as suas funções não são do agrado da OMC.

A cada quatro segundos morre uma pessoa no mundo por falta de alimentos. Este flagelo, ou este crime, da sociedade capitalista, não tem a ver com questões técnicas ou de recursos. Não se resolve porque não está na natureza do sistema capitalista resolvê-lo, assim como outros flagelos com os quais a humanidade está confrontada.

Salvo raríssimas excepções, os países ricos utilizam a ajuda alimentar para colocarem os seus excedentes, ganhar partes de mercado e criar hábitos alimentares para os seus produtos.

Não são cegos, são zarolhos

Certos economistas e comentadores da nossa praça defendem orientações e interesses que nada têm a ver com a fome. De facto, em nome da fome, propõem a fuga para a frente, juntar mais liberalismo ao liberalismo, mais desregulamentação à desregulamentação, defendem que a solução seria o acesso dos pobres ao mercado dos ricos, como se não estivessem por detrás disso os interesses das transnacionais do agro-alimentar. Vão ainda mais longe dizendo que a União Europeia é proteccionista com a sua PAC. A realidade é outra, a União Europeia espezinhou há muito a preferência comunitária. Faz sucessivos acordos bilaterais prejudiciais à agricultura familiar da União Europeia, e muito particularmente à agricultura familiar portuguesa. O nosso país é vítima todos os dias da invasão de produtos agrícolas que não reflectem os custos de produção (dumping).

Contrariamente ao que nos fazem crer, não existe um mercado mundial de produtos agrícolas, existem sim trocas internacionais, 90% das produções são consumidas internamente e 10% dão a volta ao planeta desestabilizando as agriculturas locais, porque são altamente subsidiadas. Penetram nos mercados sem pagar direitos aduaneiros.

Do que os agricultores precisam é preferencialmente acesso ao seu próprio mercado, acesso à terra e à água, preços que paguem o seu trabalho e investimento. É isso que lhes é negado pelas políticas neoliberais na agricultura. Por isso, em Roma defendeu-se o conceito de soberania alimentar como forma de resolver os problemas da fome, da má alimentação e da desertificação do mundo rural. A soberania alimentar é o direito de cada país a definir as suas políticas agrícolas e a defender-se da invasão de produtos que circulam sem regras, com preços que não reflectem os custos de produção, arruinam as agriculturas locais e tornam assim os países dependentes e submetidos à arma alimentar. O nosso país é o exemplo dessa situação.

Os economistas e políticos neoliberais não são cegos, são zarolhos. Só vêem os produtos como uma mercadoria e não como a alimentação da humanidade.

«Avante!» Nº 1494 - 18.Julho.2002