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O projecto televisivo
da Igreja Católica (IV)

RELIGIÕES  • Jorge Messias

Na fase terminal deste período de 1985 a 1992, começam a diminuir as tensões internas da hierarquia da igreja mas surgem, em contrapartida, sinais alarmantes de divisão na base política de apoio ao projecto TVI. A força parlamentar de direita, sobretudo a nível do PSD, revela-se fragmentada quanto à concessão do Canal 2. Também outras medidas, como a da supressão das taxas de televisão colocam, de um lado a Igreja e a Sonae; do outro lado, os deputados ligados aos interesses da SIC, de Pinto Balsemão e dos seus financiadores. A questão do sistema de sinais é de tal forma embaraçosa que nem sequer é debatida. Caso, nessa altura, a TVI fosse a concurso, em pé de igualdade com os outros concorrentes, seria excluída. Numa outra faceta da questão, a decisão final da atribuição dos canais transformara-se numa verdadeira bola de «ping-pong» constantemente trocada entre o Governo e a Alta Autoridade para a Comunicação Social. Com o tempo, o «dossier» da operação financeira começara a revelar duvidosos dados nas três propostas em causa. O capital acumulado pela TV1 (Proença de Carvalho) era da ordem dos 7500 milhares de contos, não totalmente realizados, e prometia investir, no primeiro ano de actividade, 113 milhões de contos em promoção da publicidade; a SIC e a TVI garantiam capitais mais baixos (à volta dos 4 ou 5 milhões de contos) mas totalmente consolidados. Embora divididos, os membros da AACS preferiram as propostas com maior solidez. Nestes termos, a SIC e a TVI foram proclamadas vencedoras. A SIC teve o Canal 3, a TV Católica o Canal 4.

Não deixará de ser curioso citar-se parte de um artigo editado, nessa ocasião, no «Público» de 14.02.92: A Igreja Católica portuguesa não nasceu ontem e talvez compreenda os riscos da operação TVI. E, no entanto, persistiu. Porquê? Porque em Portugal a Igreja, perseguida pelos liberais e republicanos, se habituou a confundir a sua influência com o seu poder. O que lhe interessa é o poder, o poder do Estado e o poder sobre o Estado: o poder político... A TVI trará sarilhos à Igreja e dissensões aos católicos. Mas traz peso à instituição. Arma-a com um instrumento para se engrandecer no século e proteger os seus homens. A sua autêntica missão, tal como ela a entende, é fundir-se com o Estado. E um dia acordará, atónita, com a inexplicável irreligiosidade dos portugueses tal como, outrora, de cem em cem anos, se surpreendia com a misteriosa ressurreição do anti-clericalismo.

Apoios imperiais

Para além das garantias financeiras dadas pela igreja, certamente que pesou na decisão final da AACS a argumentação de Magalhães Crespo quanto à questão das «audiências». A TVI seria construída sobre uma sólida base. A Rádio Renascença garantir-lhe-ia a adesão dos seus milhões de ouvintes. A Universidade Católica determinaria a alta qualidade cultural da nova estação. E a marca social da TVI viria a reflectir-se na programação através da influência das 78 Misericórdias suas accionistas e presença de centenas de associações e ordens religiosas, ONGS e IPSS subscritoras do projecto. Não menos importante terá sido o facto - que passou despercebido - de ter sido nesse ano de 1992 que Mário Conde, poderoso banqueiro do Opus Dei castelhano, comprou parte importante da Antena 3, lado a lado com o australiano Rupert Murdoch e com o grupo de comunicação social ZETA, de António Ascenso, conhecida figura ligada aos capitais da igreja. O Canal 3 era, já então, accionista da TVI, embora modesto (5% do capital da estação) mas, curiosamente, fora-lhe atribuído pela igreja e por Magalhães Crespo um contrato de gestão do novo emissor. O modesto projecto televisivo da TVI (tal como a AACS o considerou) tinha reunido apoios verdadeiramente imperiais, tais como os de Berlusconi, Mário Conde, Chase Manhattan Bank, etc.

A igreja ia ficar com um canal de TV privado que nunca desejara mas que não desprezaria. O objectivo a atingir era a RTP 2, onde já tinha posto um pé, à sombra da Liberdade Religiosa, com aquela meia-hora diária partilhada com outras confissões religiosas (80% do tempo para os católicos, 20% para todos os outros). Mas o alastrar da sua influência na cobiçada estação pública não ficara, evidentemente, por aí. É hoje fácil entender-se que grande parte da programação da RTP tem já a marca da presença católica.

«Avante!» Nº 1494 - 18.Julho.2002