Zillah Branco
A Europa, ou talvez mesmo o chamado «mundo ocidental», tem vindo a ser governado pelos expoentes da ultra-direita, aquela que faz lembrar o nazi-fascismo de triste memória. A lista de países que conduziram, pela via eleitoral, representantes da direita ao poder já é longa na Europa (que inclui Israel, em festivais e laços político-económicos, como parceiro do Ocidente): Espanha, Áustria, Itália, Israel, Bélgica, Dinamarca, Portugal e agora França (os media louvam a permanência do trabalhista inglês neste quadro de direita sem referir que ele está descaradamente no bolso do presidente norte-americano).
Isto soma com a eleição artesanal de Bush, nos Estados Unidos, que alimenta não só guerras, com o pretexto de lutar contra o terrorismo, mas também golpes militares, como o que afastou por 48 horas o presidente da Venezuela, o domínio da direita e, em alguns casos, extrema-direita do mundo globalizado que inclui os países dependentes do Terceiro Mundo controlados através do FMI.
Tais desfechos eleitorais respondem a uma causa visível, a da desmoralização da social-democracia que foi entusiasticamente engolida pelo neocolonialismo e a globalização enquanto ocupou o poder governamental nas últimas décadas. Depois de anos de namoro com a direita, e troca de mútuos elogios que aproximavam os parceiros unidos na anterior guerra-fria contra o socialismo, servindo-se do trabalho sorrateiro do FMI, da CIA, com a complacência do Banco Mundial e tantos outros organismos internacionais criados teoricamente para promover o desenvolvimento mundial, ora festejando os «milagres económicos» de alguns países subdesenvolvidos (como o Brasil durante o regime ditatorial), ora chorando lágrimas de crocodilo pela «década perdida» (que instalou a fome na América Latina e na África), realizou-se a união consagrada pela social-democracia e pela direita internacional em torno da utópica «casa comum» mundial.
O mundo todo foi revelando o somatório de desastres decorrentes não só do sistema implantado mas ainda da subordinação à velha tendência norte-americana conhecida como «imperialismo». As vozes que alertaram para o agravamento da miséria decorrente da má distribuição da renda, para a queda de produção devido à concentração das empresas e das terras com o consequente desemprego de milhões de trabalhadores, para o inevitável agravamento das condições de alimentação, saúde e habitação das populações carentes que ficaram à mercê das poderosas redes criminosas que destroem a segurança pública, foram identificadas como saudosistas de princípios revolucionários vencidos com o desmoronamento da União Soviética.
No Brasil receberam títulos como os de «bobistas», «anti-patriotas», e outros, que caracterizavam os opositores do caminho social-democrata em declive como ingénuos ou fanáticos. Foram anos de esclarecimento contínuo feitos por movimentos de massa que defendem a consciência de cidadania, os partidos de oposição, o MST, os Sem Teto, inúmeros expoentes da intelectualidade (como os saudosos professores Florestan Fernandes e Milton Santos, e tantos outros que não se deixaram iludir com o chamado «capitalismo humanizado»), a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros, as associações pela Paz, igrejas, enfim, por quem não podia assistir calado à visível derrocada das sociedades governadas por uma elite imperdoavelmente alienada pelo deslumbramento com o poder. Os media deixou que tais vozes aparecessem em raras pinceladas de realidade nos noticiários dominados pela promoção do sistema imperante que se especializou em monetarismo e jogos políticos alimentados pela corrupção e a falta de ética.
Imposição de um «fatalismo»
O apoio aos fortes candidatos da social-democracia apareceu em todo o mundo como uma obrigação, como uma fatalidade, para os que defendem a democracia. Os comunistas e outros grupamentos de esquerda que se recusaram a aceitar o status quo instaurado pela social-democracia aliada à direita foram acusados de divisionistas da esquerda como se o passado centenário dos partidos socialistas tivesse algo a ver com os modernos social-democratas.
Os eleitores da Europa demonstram o seu cansaço com a abstenção nas urnas e com a indicação de outros candidatos que não seriam eleitos mas representavam uma proposta programática coerente com os verdadeiros princípios democráticos defendidos pela esquerda em todo o mundo. Descobriram que a social-democracia como fatalidade abriu caminho à globalização e ao neo-capitalismo, que são a ante-sala de Bush e Sharon com os seus desvarios de domínio mundial.
Os cidadãos conscientes não aguentam mais dar o seu voto de «Maria-vai-com-as-outras» aceitando o status quo como condicionante da sua escolha. Lutam pelas mudanças necessárias para interromper a destruição do equilíbrio geo-político e o holocausto de povos esmagados pela miséria ou pelas armas dos exércitos imperialistas.
O racismo como arma
O racismo volta a ser utilizado como arma nazista para discriminar os inimigos da ordem, isto é, da elite dominante. Bush denuncia os árabes como terroristas, Le Pen generaliza para os imigrantes e os judeus a sua fobia. A perseguição aos judeus foi detonada por Sharon ao formar um exército nazista que repete o holocausto tomando como vítimas os palestinos. Os latino-americanos sofrem manifestações de preconceitos responsabilizados pelos crimes de que são vítimas: redes de droga, de prostituição, de crime organizado para assaltos, sequestros, fugas de penitenciárias tidas como «de alta segurança». Africanos e asiáticos são descartados devido às suas carências acumuladas: fome, doenças, despreparo profissional.
Os preconceitos estabelecem um muro que divide a humanidade entre cidadãos e escravos. Como até o fim do século XIX, os escravos podem ser vendidos ou mortos pelos seus senhores. Nem são contabilizados os afegãos eliminados pelos bombardeios e pela fome causada pela guerra, nem os palestinos soterrados sob os escombros de cidades inteiras invadidas pelos tanques israelenses. Pouco se sabe acerca dos barcos carregados de africanos e asiáticos que emigram de suas terras arrasadas pelos planos de produção falidos, do Banco Mundial e outros organismos internacionais, que serviram para abrir caminho à protecção ocidental contra o terrorismo que vai instalando bases militares ou deixando o terreno minado. Às vezes surge uma notícia ou outra de emigrantes clandestinos abandonados no oceano ou abatidos quando chegavam em pequenos barcos à costa. Na Austrália descobrem ossos humanos nos ventres de tubarões. São notícias exóticas que animam a monotonia das informações seleccionadas pelas agências internacionais.
Os condimentos para o confronto nazista mundial foram meticulosamente preparados e o holocausto está em curso em campos de refugiados para substituir os onerosos campos de concentração de Hitler. Urge desenvolver a consciência de cidadania e de humanidade para que as práticas alienadoras da sociedade de consumo não prossigam o seu processo de destruição da sensibilidade das populações para os perigos que nos cercam.
Hora de fazer política
Em entrevista a um pequeno jornal brasileiro, o bispo Dom Demétrio Valentim que incentiva a realização de um Plebiscito da Alca, como o que já foi feito o da dívida externa há dois anos, ressaltou a importante medida de esclarecimento da população e mobilização em torno de um tema de interesse económico e político. «Trata-se de um Plebiscito com grande valor pedagógico, que educa para o debate de questões que precisam do respaldo popular para serem bem conduzidas politicamente», e, continua, «a democracia nunca pode ser considerada como uma conquista já estabelecida. Ela enfrenta agora, especialmente, o desafio do poderio económico nas campanhas eleitorais, e a capacidade de distorção e alienação dos grandes meios de comunicação. Por isto, precisamos encontrar maneiras de neutralizar a ditadura do poderio económico e dos grandes conglomerados de comunicação, para que as eleições não se transformem em instrumento de mascarar de democracia conchavos feitos com antecedência para a pilhagem do poder.»
Ao ser consultado sobre a proposta de aliança com o PL - Partido Liberal, da Igreja Universal - feita pelo Lula como candidato à Presidência pelo PT, o bispo Valentim respondeu: «Alianças fazem parte do jogo democrático. Mas não podem significar a abdicação de convicções, nem o abandono da coragem de propor com transparência a plataforma de transformações que precisam ser feitas.» Quando o entrevistador referiu a acusação feita à CNBB de «fazer política», o bispo lembrou que há católicos em todos os partidos políticos mas «só são estigmatizados de "fazer política" os que propugnam por mudanças profundas na sociedade injusta em que vivemos»! Quem vota pela sua continuidade não é considerado como "fazendo política"».
É mais que hora de fazer política pela Paz Mundial, com todos
os recursos pedagógicos e de mobilização de massas!
«Avante!» Nº 1494 - 18.Julho.2002