GASTONOMIA Francisco Mota
Para
António Caeiro
Pequim - China
Amigo Toi:
Mando-te esta carta para que os leitores do Avante! conheçam uma
das histórias que numa das noites que passei na tua casa de único
jornalista português na China, me «obrigaste» a escrever.
A história é assim: em 1982, viajei a Cuba para trabalhar na minha
profissão, não como turista. Nesse tempo o turismo na ilha praticamente
não existia e os hotéis estavam quase sempre vazios. Os restaurantes
eram uma desgraça.
Depois de um dia totalmente mau, física, moral e profissionalmente, cheguei
ao meu quarto, com um pessimismo absoluto. Ali fiquei até chegar a hora
de jantar, deitado naquele calor húmido do quarto. Já sabia que
o restaurante do Habana Libre não era nenhuma maravilha, mas lá
me decidi a subir ao último andar onde estava o restaurante Sierra Maestra.
A sala enorme, com lugar para umas centenas de pessoas tinha três ou quatro
mesas ocupadas. Num canto lá ao fundo uma pianista negra enorme (mais
de um metro e oitenta) deixava cair umas notas de música que ameaçavam
ser a única coisa agradável do jantar.
O chefe da sala (el Capitán) acompanhou-me a uma das dezenas de mesas
vazias que ele próprio escolheu. Sentei-me. Olhei para a carta, que já
sabia de cor, e que não tinha nada interessante.
O meu desânimo era evidente. O empregado disse-me: teve um dia duro? Muito,
disse eu. Então vou falar com o cozinheiro e trazer-lhe alguma coisa
especial para se sentir melhor, está de acordo? Oká, disse eu
em cubano (tranformação local do O.K. dos yankees).
O homem desapareceu ao fundo e eu fiquei à espera, libertado pelo menos
do problema da escolha.
Passados dez minutos apareceu um prato de fruta colorida e variada. Para começar
não era mau só que a fruta tinha sido cortada há umas horas
e estava seca por fora. Lá se comeu.
O «compañero» preparava-se para o momento principal com um
sorriso confiante. Mais um quarto de hora e vejo-o sair da cozinha com um prato
no alto da mão, com o braço elevado até à altura
da cabeça. Dominava totalmente a cena. Aproximou-se e pousou na minha
frente a iguaria: «um bife da nossa melhor carne com batatas fritas agora
mesmo».
Afastou-se imediatamente e observei o novo problema que tinha pela frente: uma
tira fina de carne quase negra da fritura excessiva, dura e sem sabor, acompanhada
por umas batatas que escorriam gordura de procedência mais que duvidosa.
Olhei à minha volta e tropecei nos olhos sorridentes e confiantes do
empregado. Ele estava seguro daquela maravilha. Eu já não estava
cansado, tinha medo.
Tomei uma decisão: não posso defraudar este homem, vamos, coragem.
Comi tudo. Quando acabei ele sabia que o estrangeiro estava conquistado. Sem
procurar o meu comentário disse: um café forte, não é?
Trouxe-me um líquido escuro e amargo, onde deitei uns quilos de açúcar
e continuava a margo. Bebi.
Ele sabia que tinha feito uma pessoa feliz. Era eu. Era verdade. Não
pela comida, mas pela intenção de usar um jantar para elevar a
moral de um tipo desgraçado, que era eu naquele dia.
Senti-me melhor, muito melhor. Acompanhou-me à porta. Agradeci-lhe e
menti objectivamente: estava tudo muito bom.
Disse-me: quando se sentir mal, venha ter comigo.
Quando descia no elevador, todo eu (excepto o estômago) me sentia bem.
Aquele homem salvou-me o dia.
Aqui tens, Toi, uma das história que, com o teu faro de jornalista, me
fizeste prometer que algum dia escreveria sob o título «As piores
refeições da minha vida».
Lutámos ainda miúdos, na Amadora, contra o fascismo, com a beleza
e a ingenuidade lógicas. Os nossos caminhos políticos separaram-se,
mas talvez não estejamos tão longe como às vezes parece.
Orgulho-me de continuar a discutir contigo com a frontalidade e a amizade de
quem tem um passado comum, de quando ter ideias era realmente perigoso.
Um grande abraço, companheiro.
«Avante!» Nº 1494 - 18.Julho.2002