Proposta de OE para 2014

Um orçamento de classe

Miguel Tiago

A pro­posta de Or­ça­mento do Es­tado para 2014, apre­sen­tada pelo Go­verno PSD/​CDS, é, além de um des­ca­rado e fla­grante as­salto aos tra­ba­lha­dores, re­for­mados, e pen­si­o­nistas, um passo mais na re­cons­ti­tuição de pri­vi­lé­gios para grandes grupos eco­nó­micos e mo­no­pó­lios e no en­fra­que­ci­mento da já débil de­mo­cracia por­tu­guesa.

Este é um or­ça­mento de agra­va­mento do roubo, de as­salto à de­mo­cracia e de se­questro de di­reitos fun­da­men­tais

A pro­posta de lei de Or­ça­mento do Es­tado para 2014 é uma sín­tese do pro­grama de re­tro­cesso so­cial que o grande ca­pital e o seu go­verno pre­tendem aplicar em Por­tugal a pre­texto da crise, do dé­fice e da dí­vida. Traduz uma opção po­lí­tica de classe que afronta agres­si­va­mente os di­reitos so­ciais, cul­tu­rais e eco­nó­micos do povo e dos tra­ba­lha­dores, cor­ro­endo igual­mente a pró­pria na­tu­reza do re­gime de­mo­crá­tico. A exe­cução do pacto de agressão as­si­nado pela troika do­més­tica (PS, PSD e CDS) e pela es­tran­geira (FMI, BCE, UE) re­sulta numa pro­funda des­fi­gu­ração do Es­tado re­sul­tante de Abril, num desvio or­ga­ni­zado e pro­ta­go­ni­zado pelos pró­prios ór­gãos de so­be­rania que re­a­fecta a des­pesa pú­blica, di­mi­nuindo a que é di­ri­gida para as­se­gurar di­reitos e pro­tecção so­cial e au­men­tando a que é di­ri­gida para pagar os juros das dí­vidas con­traídas junto da banca e para os en­cargos com as cha­madas «par­ce­rias pú­blico-pri­vadas» (PPP), ab­di­cando de re­ceita através de be­ne­fí­cios fis­cais a co­berto das po­lí­ticas de di­reita nos úl­timos trinta e oito anos.

É aliás por essa na­tu­reza de classe que po­demos co­meçar por ca­rac­te­rizar o Or­ça­mento do Es­tado para 2014: ao mesmo tempo que sub­trai quatro mil mi­lhões de euros à eco­nomia através de me­didas de aus­te­ri­dade, a des­pesa com juros da dí­vida cresce 135 mi­lhões e as­cende já a 7239 mi­lhões de euros e a des­pesa com en­cargos re­sul­tantes das PPP sobe 776 mi­lhões de euros, che­gando aos 1645 mi­lhões de euros. Isso sig­ni­fica que o Go­verno PSD/​CDS re­ne­go­ceia os di­reitos, a vida dos por­tu­gueses, o texto fun­dador da Re­pú­blica, ao invés de os sal­va­guardar re­ne­go­ci­ando os termos, juros, prazos e mon­tantes da dí­vida.

São 2211 mi­lhões de euros em cortes sa­la­riais e nas pen­sões da Ad­mi­nis­tração Pú­blica, 300 mi­lhões de corte di­recto no fun­ci­o­na­mento do Ser­viço Na­ci­onal de Saúde, num total de 784 mi­lhões sub­traídos ao Mi­nis­tério da Saúde, são 425 mi­lhões de euros re­ti­rados ao Or­ça­mento do En­sino Bá­sico e Se­cun­dário e mais de 10 mi­lhões ao or­ça­mento da Cul­tura. Ilus­tra­tivos do pendor de classe do or­ça­mento são também os ob­jec­tivos de re­duzir em 13,5 mi­lhões de euros a des­pesa com abono de fa­mília, em 6,7 mi­lhões de euros os apoios a idosos e em 10 mi­lhões as des­pesas com o ren­di­mento so­cial de in­serção. Ao mesmo tempo, o Go­verno as­se­gura através deste Or­ça­mento a cres­cente ga­rantia de emissão de dí­vida por parte da banca, dis­po­ni­bi­li­zando 24 670 mi­lhões de euros para essas ga­ran­tias (mais 550 mi­lhões de euros que em 2013), sendo que neste mo­mento o stock da dí­vida ga­ran­tida pelo Es­tado à banca é já de 14 475 mi­lhões de euros.

O pior Or­ça­mento do Es­tado na his­tória da de­mo­cracia exige, do total do es­forço im­posto aos por­tu­gueses, uma par­ti­ci­pação da banca e das grandes em­presas do sector ener­gé­tico que não chega a 4%, através da co­brança pre­vista de taxas adi­ci­o­nais. En­quanto aos tra­ba­lha­dores será es­bu­lhada uma sig­ni­fi­ca­tiva parte dos seus ren­di­mentos, ao grande ca­pital fi­nan­ceiros e aos mo­no­pólio serão exi­gidas par­ti­ci­pa­ções in­sig­ni­fi­cantes, ou mesmo ine­xis­tentes, na me­dida em que a banca obtém, por via deste or­ça­mento, mais ne­gócio e mais lu­cros e que os grandes grupos da energia tudo farão para re­per­cutir no uti­li­zador final o custo das taxas adi­ci­o­nais.

Este é um or­ça­mento de agra­va­mento do roubo, de as­salto à de­mo­cracia e de se­questro de di­reitos fun­da­men­tais.

Um or­ça­mento de men­tiras

O Go­verno pre­tende ali­mentar a ilusão de que este Or­ça­mento re­pre­senta um es­forço final, de que es­tamos pe­rante um mo­mento de in­versão da ten­dência e fan­tasia sobre o cres­ci­mento eco­nó­mico, ba­seado em in­di­ca­dores frá­geis e ins­tá­veis, ou mesmo na ma­ni­pu­lação e na men­tira. O mesmo Go­verno que, desde a as­si­na­tura do pacto de agressão, é res­pon­sável por cortes de mais de 20 mil mi­lhões de euros no fi­nan­ci­a­mento do Es­tado e das suas fun­ções so­ciais, anuncia agora que prevê o au­mento da pro­cura in­terna (0,1%) e o cres­ci­mento do PIB (0,8%) no mesmo mo­mento em que in­ten­si­fica a ofen­siva an­ti­de­mo­crá­tica, os roubos sobre os sa­lá­rios e pen­sões, o ataque à Es­cola Pú­blica de Abril, ao Ser­viço Na­ci­onal de Saúde, às pres­ta­ções so­ciais e ao valor do tra­balho, também no sector pri­vado, prin­ci­pal­mente por via do alas­tra­mento do de­sem­prego e dos cortes nos sub­sí­dios. A con­ti­nuada e brutal carga fiscal em im­postos in­di­rectos a juntar à per­sis­tente des­va­lo­ri­zação do tra­balho não podem fazer crer, como pre­tende o Go­verno, que o in­ves­ti­mento au­mente e a eco­nomia cresça.

Da mesma forma, não po­demos aceitar que sejam re­du­zidos o dé­fice e a dí­vida pela via dos su­ces­sivos e cres­centes cortes, pela su­ces­siva des­va­lo­ri­zação do tra­balho, pelo em­po­bre­ci­mento de quem tra­balha e de quem tra­ba­lhou e pela des­truição das fun­ções so­ciais do Es­tado. Os nú­meros mos­tram, to­davia, que nem o dé­fice nem a dí­vida estão sob con­trolo e que tanto um quanto outro fi­carão cer­ta­mente acima das pre­vi­sões do Go­verno. Os ob­jec­tivos anun­ci­ados de con­tenção do dé­fice e da dí­vida são afinal de contas apenas o pre­texto para a gi­gan­tesca ofen­siva contra as con­quistas da Re­vo­lução e contra o con­teúdo da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa. Além disso, é justo afirmar que qual­quer di­mi­nuição do dé­fice, even­tual di­mi­nuição da dí­vida em per­cen­tagem do PIB ou mesmo um qual­quer cres­ci­mento eco­nó­mico que se possa ve­ri­ficar no fu­turo terão sido con­se­guidos à custa da su­pressão de di­reitos, de de­gra­dação das con­di­ções de vida dos tra­ba­lha­dores e das po­pu­la­ções, de des­truição e pri­va­ti­zação de ser­viços. Esse é o ca­minho que leva ao afun­da­mento na­ci­onal e que, mesmo pe­rante té­nues va­ri­a­ções po­si­tivas dos in­di­ca­dores eco­nó­micos, não co­loca o País numa rota de cres­ci­mento e de re­cu­pe­ração da so­be­rania, antes o torna mais pobre, mais de­pen­dente e menos de­mo­crá­tico.

Re­dis­tri­buir ren­di­mentos
a favor do grande ca­pital

Em 1973, o úl­timo ano da di­ta­dura fas­cista em Por­tugal, 49,2% do ren­di­mento na­ci­onal era dis­tri­buído sob a forma de re­mu­ne­ração de tra­balho. Em 1974, essa com­po­nente as­sume 54,6% do total do ren­di­mento e em 1975 atinge o valor de 64,7%. Em 1976 o valor da par­cela de re­mu­ne­ra­ções do tra­balho co­meça a de­crescer sen­si­vel­mente e a po­lí­tica de di­reita, pro­ta­go­ni­zada por PS, PSD e CDS, ao longo das úl­timas dé­cadas veio re­co­locar a dis­tri­buição de ren­di­mentos ao nível da­quela que Por­tugal co­nhecia nos tempos da di­ta­dura dos mo­no­pó­lios. Em 2012, apenas 48% do ren­di­mento na­ci­onal foi dis­tri­buído sob a forma de sa­lá­rios e con­tri­bui­ções para a se­gu­rança so­cial. Essa tra­jec­tória é pro­gra­má­tica e conta com o con­tri­buto de­ter­mi­nante dos par­tidos que aplicam ser­vil­mente a re­ceita da União Eu­ro­peia e do grande ca­pital na­ci­onal e trans­na­ci­onal – PS, PSD e CDS.

O Or­ça­mento do Es­tado para 2014, de­pois de o de 2013 ter in­tro­du­zido um au­mento de 30% nos im­postos sobre o tra­balho, prevê um au­mento da re­ceita fiscal re­sul­tante de im­postos di­rectos sobre o tra­balho (IRS) de 3,5%. Isto re­sulta num evi­dente agra­va­mento das as­si­me­trias, com o Es­tado a as­sumir res­pon­sa­bi­li­dades di­rectas: do total da re­ceita fiscal ob­tida por im­postos di­rectos, 75% é con­se­guido por via de im­postos sobre o tra­balho e apenas 25% são ob­tidos por im­postos sobre o ca­pital. No en­tanto, os tra­ba­lha­dores detêm apenas 48% da ri­queza na­ci­onal e o ca­pital apro­pria-se de uma cada vez maior fatia da ri­queza na­ci­onal. Ao mesmo tempo, o Go­verno aposta na re­cons­ti­tuição de pri­vi­lé­gios e de con­so­li­dação de novos e ve­lhos mo­no­pó­lios, quer através das PPP, quer das pri­va­ti­za­ções, quer da li­qui­dação da pe­quena e média ac­ti­vi­dade em­pre­sa­rial.

Re­cusar a dí­vida ile­gí­tima

Ao longo dos anos, par­ti­cu­lar­mente desde a en­trada na CEE e a na União, Por­tugal re­cebeu fundos para re­duzir o con­tri­buto in­dus­trial e agrí­cola para a ri­queza na­ci­onal. Ou seja, Por­tugal re­cebeu di­nheiro e ori­en­ta­ções po­lí­ticas para se en­di­vidar. Tais ori­en­ta­ções foram se­guidas pelos par­tidos do arco da men­tira e da ban­car­rota e sub­me­teram o País à de­pen­dência eco­nó­mica, fi­nan­ceira e po­lí­tica que hoje as­sume a forma do con­trolo po­lí­tico por via do pacto de agressão.

Na cha­mada dí­vida exis­tirão as par­celas cor­res­pon­dentes aos des­mandos e aven­turas dos ban­queiros, aos seus crimes, as par­celas cor­res­pon­dentes ao des­man­te­la­mento da in­dús­tria, da agri­cul­tura, das pescas, da pro­dução na­ci­onal – para as que há muito o PCP alerta – as par­celas de au­tên­tico e per­ma­nente perdão fiscal aos grandes grupos eco­nó­micos. Só eli­mi­nando as com­po­nentes po­lí­tica e so­ci­al­mente ile­gí­timas da dí­vida, que podem re­pre­sentar uma im­por­tante parte do total as­su­mido pelo Go­verno e pela troika, só re­ne­go­ci­ando os termos, os prazos, mon­tantes e juros, da dí­vida po­derá o País as­se­gurar um rumo de cres­ci­mento que as­se­gure a pró­pria sus­ten­ta­bi­li­dade da dí­vida, mas acima de tudo, o res­peito pelos di­reitos de Abril. PS, PSD e CDS su­bor­dinam o País ao ob­jec­tivo sa­grado de «re­gressar aos mer­cados», quando na ver­dade de­vemos pre­parar o País para de­pender cada vez menos desses «mer­cados» que é como quem diz, de­pender menos do grande ca­pital, da agi­o­tagem e do con­trolo po­lí­tico ex­terno.

Só com os va­lores de Abril
Por­tugal terá fu­turo

Que não restem dú­vidas sobre a ur­gência de der­rotar este Go­verno e a sua po­lí­tica. Essa luta tem neste mo­mento um ele­mento cen­tral: a luta pela re­jeição dos efeitos e con­sequên­cias do pacto de agressão e, no­me­a­da­mente, contra o Or­ça­mento do Es­tado para 2014.

Travar essa luta re­pre­senta mais um passo no ca­minho para a rup­tura com a po­lí­tica de di­reita, não para uma al­te­ração de pro­ta­go­nistas, mas para a cons­trução de uma real al­ter­na­tiva po­lí­tica, pa­trió­tica e de es­querda, capaz de res­gatar a so­be­rania na­ci­onal, re­cons­truir as con­quistas de Abril e apro­fundar a de­mo­cracia. A am­pli­ação da frente so­cial de luta, a par­ti­ci­pação po­pular e dos tra­ba­lha­dores na de­fi­nição dos ob­jec­tivos po­lí­ticos e na ba­talha para os al­cançar, a cons­ci­en­ci­a­li­zação das massas e a in­ten­si­fi­cação da luta, a par do re­forço do PCP são além de ne­ces­sá­rios, de­ter­mi­nantes para in­verter o rumo de des­truição na­ci­onal e afirmar os va­lores de Abril no fu­turo de Por­tugal.

 



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