Inflação, diz ela

Anabela Fino

Quantas vítimas serão necessárias para se reconhecer que persistir na «cura» até matar o «doente» não é a forma mais eficaz nem mais racional de resolver um problema? A pergunta é retórica, já que o Banco Central Europeu voltou a subir as taxas de juro, naquela que é a décima subida consecutiva. Em pouco mais de um ano, as taxas passaram de -0,5% para os actuais 4%, valor impressionante mas que pode não ficar por aqui, como disse a responsável do BCE, Christine Lagarde, ao admitir que este podia não ser ainda o pico, e garantindo que, mesmo sem novos aumentos, o valor das taxas se manterá pelo menos até final de 2025.

Significa isto que os trabalhadores vão continuar a ser fustigados por esta política de pseudo combate à inflação, numa altura em que, no caso de Portugal, metade dos trabalhadores afirma que o seu salário não cobre todas as despesas, como revelou a semana passada o primeiro Barómetro Europeu sobre Pobreza e Precariedade. O estudo, encomendado pela organização não governamental francesa Secours Populaire Français, mostra que, devido a uma «situação financeira difícil», 62% dos europeus já restringiram as suas viagens, 46% já desistiram de aquecer as suas casas no Inverno, 38% não fazem três refeições por dia, 39% deixaram de comprar carne para poupar dinheiro e 10% recorrem a associações de caridade para obter alimentos.

Um inquérito da Eurofound (Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho) dava conta, já em meados do ano, que cerca de 10% das famílias portuguesas receavam não conseguir pagar a casa onde vivem num espaço de três meses, contra os 6% da média europeia. Dado o vertiginoso aumento das taxas de juro, é de crer que as expectativas sejam hoje muito mais sombrias, tanto mais que a senhora Lagarde persiste no «remédio’ de fazer baixar os rendimentos do trabalho para conter a inflação, não se cansando de recomendar aos governos que cortem nos apoios às famílias.

O facto de o BCE responsabilizar as famílias e os aumentos salariais pela inflação é particularmente curioso, já que um estudo realizado em Junho último por economistas do insuspeito (de simpatias pelos trabalhadores) FMI veio revelar que, desde 2021, o aumento dos lucros das empresas está na origem de 45% da inflação na Europa, contra 40% devido à subida dos preços das importações e apenas 15% dos salários dos trabalhadores.

«Para que a inflação se encaminhe em direcção à meta de 2% estabelecida pelo BCE, as empresas poderão ter de aceitar uma participação nos lucros mais baixa», diz o FMI.




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