À bomba e à fome

Gustavo Carneiro

As imagens têm circulado, embora poucas vezes cheguem aos noticiários, e nunca com o destaque que mereciam: crianças prostradas, de olhar apático e tão esqueléticas que os contornos dos ossos se revelam sob a pele. De parecido só vimos, na História, os sobreviventes dos campos de concentração nazis em 1945 ou as crianças em vários países africanos, na década de 80 – que, recorde-se, motivaram amplas solidariedades: “We are the world, we are the children” (nós somos o mundo, nós somos as crianças), cantaram então alguns dos mais consagrados músicos norte-americanos, por mais que lhes tenha escapado as causas fundas da tragédia.

Hoje é na Faixa de Gaza que se assiste ao massacre impune de crianças, pelas bombas e também pela fome. Às dezenas por dia, bebés e crianças estão a ser mortos e mutilados «em hospitais, em escolas transformadas em abrigos, em tendas improvisadas ou nos braços dos pais», denunciava há dias a UNICEF. Os alimentos, esses, estão ali bem perto, do outro lado das vedações e dos muros atrás dos quais aquela população (mais de dois milhões de pessoas) vive encerrada há anos, mas a sua entrada encontrava-se, desde o início de Março, totalmente bloqueada por Israel. O mesmo que acontecia com os medicamentos, os combustíveis, o material hospitalar.

Tom Fletcher, responsável das Nações Unidas para as questões humanitárias, afirmou a 20 de Maio – nove dias e mais de 200 horas antes da publicação desta edição – que 14 mil bebés podiam morrer de fome nas 48 horas seguintes, naquele território palestiniano. Repita-se, para que não escape a ninguém o que aqui se escreve: 14 mil bebés podiam morrer de fome em 48 horas! Quantos terão resistido até hoje?

A escassa ajuda humanitária que entrou nos dias seguintes (ao mesmo tempo que as bombas continuavam a cair sobre hospitais, escolas e abrigos) esteve longe de responder às necessidades: se os 600 camiões diários que entravam nos primeiros meses do ano, durante o cessar-fogo, eram insuficientes, que dizer dos menos de 200 que por esses dias puderam penetrar no martirizado território?

Em entrevista à RTP, no mesmo dia 20, o médico e professor de Medicina Humanitária, Nelson Olim, explicou que mesmo que muitas destas crianças não venham a morrer de fome neste momento, há danos que «são já para a vida». Até aos dois anos de idade, explica, a reserva fisiológica do organismo é muito baixa e qualquer privação tem impactos tremendos: défices cognitivos permanentes, baixa estatura, atrasos no desenvolvimento psicomotor, sistema imunológico debilitado. «Isto é irreversível», revelou.

Já não há palavras para descrever o horror que se vive diariamente em Gaza. Até genocídio – a mais forte que conhecemos – parece ficar muito aquém. As críticas do “Ocidente” também não convencem. Terão de ser os povos a travar os criminosos.

 



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