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Entrevista com Manuel Mendonça,
da Comissão do Avanteatro
Clássicos
e contemporâneos



Quais os espectáculos que o Avanteatro apresenta na Festa? Qual a relação entre os autores clássicos e os espectadores do século XXI? Qual o papel do actor? Manuel Mendonça, membro da Comissão do Avanteatro, aborda estas questões e fala sobre a programação deste ano.

Um dos objectivos do Avanteatro é mostrar o teatro que se faz em Portugal, divulgando trabalhos de qualidade. É o que acontece com a programação deste ano, apresentando espectáculos muito diversificados entre si. De destacar «Romagem de Agravados» – peça de Gil Vicente que assinala os 500 anos do dramaturgo –, «Alma Grande» – a partir de um conto de Miguel Torga – e um ciclo dedicado ao movimento da «Nova Dança Portuguesa», que trataremos numa próxima edição do Avante!.

- Este ano o Avanteatro tem várias peças no exterior. Há um novo conceito de espectáculo e de relação com o público?

Manuel Mendonça- Sim e não. Foram as circunstâncias de programação que nos levaram a este modelo. Com os quinhentos anos de Gil Vicente tentámos arranjar um espectáculo para não deixar passar em branco essa data.

Ao longo dos anos houve uma tentativa de transformar o Avanteatro num espaço das artes de palco, como é o caso da dança, de certa de música e de outro tipo de espectáculos que englobem o teatro, a dança, o vídeo… Procuramos que aquele espaço se aproxime cada vez mais do que se faz no País no campo das artes de palco.

Este ano houve a introdução da dança e a transformação do espaço do Avanteatro nesse espaço das artes do espectáculo. Virámo-nos para a rua porque, além dos quinhentos anos do Gil Vicente, havia um espectáculo que tivemos a possibilidade e a felicidade de lá ter, «Alma Grande», d’ «O Bando», que é um espectáculo que é feito de raiz ao ar livre. Isso obrigou também o Avanteatro a ser diferente dos outros anos.

- Quais são as diferenças?

- A tenda é relativamente mais pequena do que o ano passado e arranjámos um outro figurino para o terreiro em frente ao auditório. Com a «Romagem de Agravados» haverá uma procissão que vem da praça central da Festa, sobe a avenida e termina ao pé do Avanteatro. O «Alma Grande» também é na rua, o que permite que o palco esteja pronto para o espectáculo do João Fiadeiro, «O que sou não fui sozinho», permitindo ter outra maleabilidade.

- Em parte resolve-se também o problema da lotação do auditório, que está sempre cheio.

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Espectáculo no Avanteatro em 2001

- E este ano, embora reduzindo o espaço da tenda, conseguimos ter uma bancada para mais gente, por incrível que pareça. Vamos tentar que todos os espectáculos sejam amplificados. Há microfones de lapela para toda a gente para que todos os espectadores ouçam bem as peças. É frustrante estar numa peça de teatro – o espectáculo da palavra – e não se ouvir a palavra. Ficaria quase só com um aspecto visual do espectáculo e não com a sua essência, o texto.

Se é uma situação diferente dos anos anteriores? É, mas não quer dizer que isto se mantenha assim. Isto abre-nos outras perspectivas. O que vai acontecer não é teatro de rua, é teatro feito na rua. São espectáculos montados para serem feitos ao ar livre. Vão estar milhares de pessoas a assistir à «Romagem de Agravados» e a «Alma Grande». Dentro do Avanteatro não cabem mil pessoas, não há espaço para isso.

- Quinhentos anos depois, as personagens e as histórias dos autos de Gil Vicente continuam actuais?

- Acho que sim. O que alguns escritores, dramaturgos e pessoas das artes produzem, embora parecendo que estão muito datadas, não estão, porque conseguem caracterizar muito bem um povo, uma sociedade, os vários estratos sociais. Gil Vicente é um deles, como Eça de Queirós. Pegamos naquilo e pensamos: «Isto foi escrito ontem?» Há coisas que nos caracterizam, somos nós, somos portugueses.

- No essencial, os tipos sociais das peças correspondem a possíveis tipos sociais actuais?

- Sem dúvida. Já não têm aqueles nomes, mas as relações entre eles continuam a ser as mesmas. Dá a impressão que houve uma grande alteração de há 500 anos a esta parte – realmente houve! –, mas as relações entre as classes mantêm-se. Nos textos de Gil Vicente vê-se muito bem a relação entre o povo e o clero, entre o homem e a mulher… É actual. Se pegarmos no Gil Vicente e o fizermos conforme o que lá está ninguém vai perceber. Tem de ser actualizado, quanto mais que não seja pela linguagem. Gil Vicente é um clássico, porque foi passando. Tanto é clássico que neste momento, ao fim de 500 anos, estamos a falar dele e da sua obra.

- Gil Vicente é um autor que consta nos programas escolares, sendo só por isso considerado «chato» ou «pesado» por quem apenas lê uma peça. Como pensam ultrapassar essa resistência?

- Quando andava a estudar Camões era obrigatório e mal alguém falava em Camões a gente fugia pura e simplesmente. Camões era um sujeito chato e éramos obrigados a decorar aquelas coisas. Se o Camões nos fosse dado como hoje o Gil Vicente é dado às pessoas, com uma outra perspectiva, aprendíamos. Em Inglaterra, não há pessoa que não goste de Shakespeare, mesmo estando a estudar. Mas se calhar é estudado de outra maneira.

Nós cá, há uns anos a esta parte, tentámos pôr as crianças a fazer teatro, com aulas de expressão dramática. Se estou a dar Gil Vicente, tenho de procurar um espectáculo dele, mostro-o e depois trabalho sobre isso. Os alunos já têm uma imagem. Hoje há peças gravadas de Gil Vicente, com encenações espantosas. O professor devia fazer primeiro uma leitura encenada para despertar o interesse pelo texto.

- Portanto não receiam que as pessoas não adiram, por terem a ideia errada do que é Gil Vicente?

- Não, de todo. Se os espectadores tivessem acesso a um texto para teatro e não vissem o espectáculo, achavam que aquilo era uma chatice. Quando vêem é completamente diferente, há coisas que se acrescentam. O teatro não existe sem o actor. O teatro escrito é uma coisa, o teatro representado é outra completamente diferente. O factor actor é importantíssimo. Há uma força que o teatro tem e por isso sempre incomodou e sempre há-de incomodar as sociedades. Para já por ser uma arte directa, constante, nunca é a mesma coisa. Mesmo um espectáculo que esteja em cena durante seis anos é todos os dias diferente.

- Miguel Torga contrasta com Gil Vicente, não só por não ter escrito para teatro, como por desenvolver um trabalho essencialmente ligado à terra. Esse contraste foi intencional na selecção das peças?

- Não, de todo. Miguel Torga têm vários textos que foram teatralizados e curiosamente sempre pel’ «O Bando». Esta companhia costuma passar para teatro pequenas histórias com uma força dramática e humana bastante grande. O que é contado em «Alma Grande» é uma coisa que existia nas serras. O «Alma Grande» era o homem que fazia o «servicinho final»… Havia alguém que estava para morrer e, para não criar mais sofrimento à família e ao próprio, este «Alma Grande» acabava com aquilo.

 

«Ary dos Santos continua a incomodar muita gente»

Manuel Mendonça faz parte da Comissão do Avanteatro juntamente com mais dez militantes do Partido. A inovação é uma das preocupações que regem o trabalho deste grupo.

O espectáculo «Poesia Ary dos Santos» insere-se com naturalidade neste projecto. «É quase uma encomenda nossa, como foi o caso do espectáculo em torno da poesia do José Gomes Ferreira, encenado pelo Joaquim Benite e com a participação de Canto e Castro. Todos os anos devia haver uma pequena produção própria do Avanteatro: pegar em autores com uma obra significativa. Não significa que tenham de ser do Partido.

Esta é uma ideia que vem de há muitos anos», afirma Manuel Mendonça.

«Ary dos Santos continua a incomodar muita gente e, quando assim é, fazem por esquecer. Não convém lembrar pessoas como ele. Pegamos em antologias de poesia portuguesa e o Ary dos Santos não aparece», comenta.

«Nós, Partido Comunista, temos obrigação de lembrar os nossos filhos, aqueles que deram tudo, que sempre que era preciso estavam lá, que tiveram a coragem de assumir tudo o que fizeram e disseram», acrescenta Manuel Mendonça.

 

«Avante!» Nº 1497 - 8.Agosto.2002