«Alma Grande», de Miguel
Torga
Serra acima, serra abaixo
«Alma Grande» é uma representação aérea ao ar livre a partir da adaptação teatral de um conto de Miguel Torga pel «O Bando». Um espectáculo a não perder.
«Alma Grande» o primeiro conto de «Novos Contos da
Montanha» foi adaptado pelo Teatro «O Bando», numa
encenação de João Brites com música de Jorge Salgueiro,
que traz o espectáculo para a rua usando uma estrutura metálica
de 14 metros de altura.
O objectivo é reproduzir as elevações das serras. Para
isso, as personagens mantêm-se sempre suspensas, sem nunca tocar o chão.
Sete actores dão vida à peça, acompanhados por um violino,
um órgão e um clarinete baixo interpretados por três músicos.
A peça tem como fundo a aldeia de Riba Dal, terra de judeus que exerce uma espécie de eutanásia aos moribundos. Quando os doentes estão a morrer, o abafador surge chamado pelos familiares, evitando que o padre descubra a sua verdadeira religião, praticada durante tantos anos às escondidas.
No conto de Torga, dão-se dois encontros entre o abafador da aldeia, o Alma-Grande, um moribundo, Isaac, e o seu filho, Abel. São encontros decisivos, fundamentais para o futuro das três personagens. É uma história de amor, ódio e vingança sobre a vida, a morte e a esperança.
Uma obra ímpar
A
obra de Miguel Torga apesar de dividida em poesia, teatro, ficção
em prosa, impressões de viagem e diário é coesa,
reflexo de um indivíduo multifacetado, bem definido, comovido pela natureza
e as criaturas e revoltado contra Deus.
Devido a um temperamento independente e quase agressivo, cedo se colocou à margem de movimentos e grupos literários. Aliás, a sua posição continua a ser de grande isolamento no contexto das letras nacionais, representando, no entanto, o que há de vertical e insubordinável no homem português contemporâneo.
Grande poeta das coisas simples e elementares, Torga usa a transcendência para as vivificar e transfigurar. Português e europeu, regional mas universal, e sobretudo profundamente ibérico, o autor é um homem dividido pela nebulosidade atlântica e a claridade mediterrânea, homem de terra firme que sente o apelo do mar.
Tendo fundado a revista «Presença» juntamente com José Régio e outros escritores em 1927, Miguel Torga afasta-se do projecto três anos depois por considerar que a revista tinha perdido o seu fulgor original e não perseguia os objectivos iniciais. Para o poeta, a «Presença» era académica e estava desfasada da prática literária dos primeiros números.
Partilhando com José Régio uma poesia eminentemente pessoal e uma experiência com o divino assente na dúvida e na incerteza, Torga contudo tem uma relação diferente com a vida e a literatura. O poeta atribui uma importância à actualidade política muito maior do que Régio. Aliás, a dimensão histórica e temporal ocupa uma posição de destaque na sua obra, fruto do seu interesse na situação do seu país.
Por outro lado, Miguel Torga é um poeta angustiado que confessa a sua impotência literária. Crê mais na Literatura do que na sua literatura e mostra-se perto do mundo, sente-o e preocupa-se.
Um universo telúrico
A terra está no centro do universo de Miguel Torga, embebido de um ambiente de mitos agrários e pastoris que remontam aos símbolos bíblicos. A semente, a seiva, a colheita, a água, a terra, o vento, o pão, o parto e o pastoreio são elementos constantes numa obra repleta de tensão dramática, feita da coragem dos homens.
O desespero humanista, a problemática religiosa, o mito de Orfeu e o sentimento telúrico constituem as principais linhas temáticas da obra de Miguel Torga. O desespero apresenta-se algumas vezes sob o aspecto de protesto, de revolta e de inconformismo. Contudo, a esperança emerge frequentemente, como uma luz que se acende na imensidade da noite. Muitas vezes, a matéria da escrita é a própria indecisão entre ambos.
Numa atitude política, Torga considera que é fundamental a reciprocidade dentro da sociedade humana e que, por isso, o autoritarismo é aberrante. Num país em que um governo manda e os demais se limitam a obedecer reina a alienação, já que o indivíduo não segue a razão mas as ordens dos que dominam. A possibilidade de conciliar autoridade e razão está, pois, excluída do seu projecto.
O humanismo de Torga é um humanismo revolucionário, revoltado e rebelde, articulado pela liberdade e pela esperança. A vida, entretecida de frustração, absurdo e desespero (por não conduzir a nada), conduz precisamente à esperança.
O homem trágico torguiano não é um ser vencido ou abatido. É um ser absoluto, cercado pelo esplendor da ordem natural. Profundamente fiel e enraizado numa condição simultaneamente negra e luminosa, sem sentido e sem razão.
O sofrimento espelha-se a vários níveis: os vícios da vida mental portuguesa, a solidão agónica que o persegue, uma amargurada introspecção e um amor-raiva que nasce da contemplação da mesquinhez da terra-mãe.
Terra e céu
Miguel Torga considera a terra como o próprio céu. E essa relação com o País e o povo das aldeias é o testemunho apaixonado de uma identidade. A aliança do homem e da terra é constantemente invocada. Ora nos aparece como o acto fundamental da cultura que é a agricultura, ora como escolha da terra.
Tal como o gigante Anteu, o poeta recupera as forças no regresso à terra. O próprio pseudónimo escolhido (Torga é uma urze transmontana) revela uma identificação com a luta natural pela sobrevivência.
É a terra que lhe traz segurança, o antídoto para o desespero, a eterna mãe onde se refugia e não num distante deus austero. A sobrevalorização da terra chega mesmo a aproximar-se de uma heresia quando é equiparada ao céu, um «cais humano» que ultrapassa o «cais divino».
Torga invoca constantemente a aliança do homem com a terra, num amor
pelo povo concreto e não o povo idealizado e abstracto, usando com frequência
expressões e palavras ligadas à terra para expressar a busca e
o encontro consigo próprio. A ligação com a terra expressa
o próprio sentido do sagrado.
«Avante!» Nº 1494 - 8.Agosto.2002