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Ary dos Santos
Um dos mais importantes
poetas do século XX




O projecto «Poesia Ary dos Santos» é um espectáculo de poesia e imagem com base nos poemas do autor, procurando quebrar o silêncio a que o poeta foi votado.

Gostava de ser tratado como «poeta da Revolução de Abril» e de facto foi-o. Ary dos Santos, poeta, letrista e publicitário, entrou para a história da literatura portuguesa como aquele que registou os feitos do 25 de Abril e incentivou todo o processo revolucionário que se seguiu. Com grandeza, com perseverança, com determinação, com revolta, com coragem, com firmeza, com arrojo.

José Carlos Ary dos SantosMilitante do PCP, Ary dos Santos assumia os seus ideais políticos como inseparáveis da obra que produziu. «Eu creio que a poesia é parte principal da minha vida e que, portanto, estará indissoluvelmente ligada a tudo quanto é parte essencial dela: a luta e a liberdade dos povos, a fraternidade, o amor e, finalmente, a existência real de uma sociedade sem classes», afirmou o poeta em 1980 numa entrevista ao Diário, quatro anos antes da sua morte.

«Sempre entendi que a divulgação da poesia política é tão legítima para um poeta de esquerda, como a poesia satírica dramática ou lírica», prossegue. «Por isso mesmo entendi que a divulgação da poesia perante as massas e a sua entrega ao povo que a merece e para quem ela deve ser escrita, era um acto que me dignificava a mim e servia os intuitos mais nobres duma cultura popular e renovada.»

O espectáculo

Dizer que os poetas não morrem é um vulgaríssimo lugar comum. Não deixa por isso de ser verdade, pelo menos enquanto são lidos e aprecidados. Será isso que acontecerá no Avanteatro, na noite de domingo, num espectáculo a cargo do Teatro de Papel, com interpretação e encenação da responsabilidade de Yolanda Alves e imagem e vídeo de Bruno Gonçalves. Com a duração de 45 minutos, o espectáculo leva ao público a envolvência das palavras e das emoções. As imagens de vídeo complementam uma actuação intimista.

Pelo palco desfilarão os operários, os camponeses, os pescadores, os escriturários, os soldados, os poetas, os resistentes políticos. Estará lá também Lisboa, com o Tejo e toda a população da capital.

«Ei-lo poeta todo mãos abertas para apanhar tudo o que a vida dá», escrevia Natália Correia no prefácio a «As Palavras das Cantigas», colectânea das suas letras para canções, planeado por Ary dos Santos mas publicado apenas depois do seu desaparecimento.

«Qual o verdadeiro Ary?», questionava Natália Correia. «O dilema é difícil, para os que, conhecendo-o mais como actor ricaço de uma pose de enfant enragé, do que como desesperado real até às fezes da tragédia infantil de todos os brinquedos quebrados, questionam: qual deles é o autêntico? O do lord que foi de Escócias de outras eras revividas em damascos, pratas e cristais ou o que, nos seus poemas, rasga o peito para mostrar um coração que sangra pelos infortúnios do mundo? A resposta que prontamente me acode é: os dois e ainda mais o sensualão dos cheiros lisboetas, o pária com sobretudo com gola de astracã, o rei-bobo guizalhando chalaças para ter como súbditos todos os aplausos do mundo, o sentimentalão social que se desnuda para dar a roupa aos pobres, o eterno amante sem amor, enchendo esse vazio com risadas que sabem a sangue.»







O projecto «Poesia Ary dos Santos» é um espectáculo de poesia e imagem com base nos poemas do autor, procurando quebrar o silêncio a que o poeta foi votado.

Meu Camarada e Amigo

Revejo tudo e redijo
meu Camarada e Amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo tudo e redijo
meu Camarada e Amigo.

As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.

É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.

Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.

Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
- mas um poeta só fala
por sofrimento total!

Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Aonde me não revejo
é que eu sofro o meu país.

José Carlos Ary dos Santos

Uma obra extensa

Reagindo à morte de Ary dos Santos, o poeta José Gomes Ferreira afirmou: «Ele soube aproveitar de uma forma apaixonada o facto de ser poeta, a sua vida e o 25 de Abril.»

A sua obra, de facto, é longa. Além das mais de 600 canções que escreveu, Ary dos Santos publicou oito livros de poesia em vida. «A Liturgia do Sangue» foi o primeiro, datado de 1963, e os restantes foram-se seguindo sem grandes intervalos, prova da produtividade do autor: «Tempo da Lenda das Amendoeiras» (1964), «Adereços, Endereços» (1965), «Insofrimento in Sofrimento» (1969), «Fotos-Grafias» (1970), «Resumo» (1972), «As Portas que Abril Abriu» (1975) e «O Sangue das Palavras» (1979).

Após a sua morte, foi ainda publicada a segunda edição da antologia da sua obra, «Vinte Anos de Poesia», «VIII Sonetos» – acompanhado de uma apresentação de Manuel Gusmão e de um desenho de Rogério Ribeiro –, «As Palavras das Cantigas» e «Obra Poética».

«Avante!» Nº 1497 - 8.Agosto.2002